O DESAFIO DE FAZER O CONTROLE SOCIAL SER EFICAZ NA SAÚDE


Concluímos o processo de promoção das Conferências de Saúde no estado de Goiás com a realização de 246 conferências municipais e 18 conferências regionais. Isto ocorreu em um momento em que o Sistema Único de Saúde (SUS) passa por um período de afirmação – ou de reafirmação – com tantos desafios enfrentados e que precisam ser superados. É bem verdade que o maior problema enfrentado pelo SUS é de Gestão. É necessária uma gestão que de fato seja mais eficiente e profissional, comprometida com a defesa dos princípios do SUS e que respeite a legislação. Passados 27 anos da criação do SUS, são inegáveis os inúmeros avanços alcançados. No entanto, é também preciso declarar que há muito por ser feito: principalmente no que se refere ao cumprimento de suas normas e diretrizes. Estas são a base para a atuação dos entes federados e a todo momento são aviltadas. Isto sem contar com os equívocos e desvios de finalidade ou ainda de recursos que são mal gastos, seja por gestores desonestos, seja por falta de planejamento adequado e até mesmo por falta de priorização das ações, uma vez que as demandas são sempre maiores do que o aporte de recursos financeiros.

 

Acreditamos que com esse feito inédito em Goiás, tendo realizado as Conferências de maneira adequada, ou seja, em conformidade com as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Estadual de Saúde (CES/GO), sem dúvida começaremos uma nova trajetória e vivenciaremos novos rumos na saúde em todos os municípios, regiões e macrorregiões. O importante de fato é que seja cumprido o que determina a legislação e a própria Constituição. Ou seja, que se realize aquilo que for aprovado pelas conferências – a maior instância de deliberação do Controle Social. Que estas deliberações sejam acatadas por cada ente federado e que de fato sejam contempladas nos Planos de Saúde. Assim se cumpre todo o rito que será essencialmente adequá-los em tempo, à Lei do Plano Plurianual – PPA; à Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e à Lei Orçamentária Anual – LOA. Temos que fazer esse processo em conformidade com as Leis e a própria Constituição Federal.

 

As Conferências de Saúde têm o objetivo de melhorar a saúde e a qualidade de vida da população. Para isto, sempre sua ação será orientada no sentido de conhecer o que deveria ser feito para garantir a saúde das comunidades. Deve-se levar em conta os seus desejos e explicitar em suas diretrizes, de forma clara e objetiva, para transformar o que está acontecendo em realidade. Deve-se, ainda, orientar o como fazer para que o devido e o real sejam uma única coisa. Em resumo: confirmar o correto, modificar o errado e construir adequadamente o novo.

 

Há um aspecto preocupante em relação às Conferências que pensamos ser reflexo da atuação dos Conselhos de Saúde. Estes Conselhos deveriam de fato assumir por completo o Controle Social, incondicionalmente em todas as esferas. Isto deveria ocorrer tanto nas gestões das Secretarias Municipais como nas Conferências, cumprindo assim o seu verdadeiro papel de cogestor do SUS. Ao final deste processo, podemos concluir que de fato isto não aconteceu. Pelo contrário, os(as) conselheiros(as) municipais, com raríssimas exceções, deixaram de cumprir o seu papel deixando as secretarias municipais de saúde comandar e direcionar aquilo que seria o verdadeiro dever dos CMS. O que mais nos preocupa é que, além de não participar como indutor do processo coordenando e orientando inclusive com resoluções sobre as Diretrizes, a maioria dos municípios sequer teve representação de conselheiros(as) nas Conferências Municipais e, em consequência, nas Conferências Regionais.

 

Queremos chamar a atenção para o momento, pois se conseguimos ainda assim realizar Conferências em todos os municípios e ainda em todas as dezoito regiões de saúde, acreditamos que podemos sim colher muitos dividendos desse processo. Agora estamos realizando a Conferência Estadual de Saúde, onde reafirmaremos tudo que conseguimos extrair das conferências municipais e regionais de saúde. Na Conferência Estadual, contaremos com representantes de todas as regiões, reafirmando assim o momento democrático inicial das conferências.

 

Queremos, no entanto, chamar a atenção para o que chamamos de representação de segmentos. Será que nossas conferências realmente estão sendo representativas da sociedade? Será que conselheiros, assíduos e comprometidos no dia a dia com o SUS, estão sendo preteridos na representatividade no momento de escolha de delegados para as conferências municipais, regionais, estadual e nacional? Na quase totalidade dos segmentos, a representação nas conferências exclusivamente por conselheiros, não é mais legítima que aquela livre onde caem os paraquedistas? Acho que chegou a hora de pensarmos em valorizar os conselheiros e termos um percentual obrigatório majoritário de sua representação nas conferências. No entanto, o que tem acontecido frequentemente nos conselhos e se repete nas conferências é a usurpação de vagas retiradas dos representantes da sociedade, ou seja, dos usuários. Estas vagas são ocupadas por trabalhadores e, em alguns casos, até por gestores. Nós entendemos que, aqueles que agem assim, estão de fato agindo contra o SUS. Eles burlam o sistema em benefício próprio, usando, às vezes, o maior conhecimento para persuadir outros e subverter vantagens.

 

Há um questionamento permanente a cerca da discussão e/ou legalidade sobre quem pode ser considerado um legítimo usuário na composição dos Conselhos de Saúde. Existe muita confusão a respeito. Umas de boa fé, pois existem controvérsias, e outras de má fé, aproveitando-se das controvérsias. Vamos raciocinar a partir de alguns questionamentos e sofismas correntes. O Prefeito é um legítimo usuário dos serviços de saúde? Sim. Então ele pode sentar-se na bancada dos usuários com a maior das legitimidades, pois teve a votação majoritária para ser prefeito?! Foi o mais votado com a fiscalização dos tribunais eleitorais. Ele pode ser escolhido como representante dos usuários? E o Vice? E os assessores do Prefeito? A primeira-dama? Todos são ou não são usuários dos serviços de saúde? Os vereadores, no caso, já representam a população. Foram eleitos no rigor da lei. Podem ser os representantes dos usuários nos serviços de saúde? Os prestadores de serviços de saúde, donos e gestores de hospitais públicos, filantrópicos e privados, podem assentar-se na bancada dos usuários dos serviços de saúde? Os servidores públicos em geral e os de saúde, sindicalizados ou não, podem tomar assento na bancada de usuários? São usuários, afinal: moram nos bairros, pertencem a sociedades, medicam-se nos serviços de saúde! Todos estes – prefeito, vereadores, donos de hospitais e servidores públicos da saúde – podem postular esta condição. Ou não somos todos nós cidadãos usuários dos serviços de saúde? Incontestável e insofismavelmente, sim.

 

Entretanto, não estamos aqui falando da condição comum de todos nós, mas da condição intrinsecamente ligada à composição de um Conselho Público de Saúde, que obedece regras definidas por lei. Se não foram definidas explicitamente na letra da lei, no seu espírito e jurisprudência, existe um entendimento claríssimo de que esta seja a leitura. Em relação ao Conselho de Saúde (Municipal, Estadual e Nacional), quando a Lei 8.142/90 definiu que deve haver paridade entre o segmento dos usuários em relação aos demais, fez aí uma regra explícita de que um lado não podia se confundir com o outro, para que não se quebrasse a paridade, colocada como imprescindível e essencial.

 

A paridade foi colocada como essência e como princípio, e foi destacada em um parágrafo: – a paridade entre o segmento dos usuários e o conjunto dos demais segmentos. Se a paridade é colocada como essência, ela não pode ser quebrada. Podemos ser flexíveis em questões táticas, mas devemos ser inflexíveis em questões de princípios. Seria ilegal e imoral que o prefeito, vereadores, gestores de hospital (públicos e privados), servidores públicos e trabalhadores de saúde (públicos e privados) ocupassem assento no Conselho como usuários dos serviços de saúde. Por quê? Qualquer um destes segmentos tem um assento próprio, específico, reservado no Conselho e não poderia ter uma dupla categorização, pois elas devem ser mutuamente excludentes. No caso de Vereador, a justificativa é o fato dele ter assento no Legislativo, cumprindo seu papel, entre outros, de controlar e fiscalizar o Executivo, devendo ser garantida a independência dos poderes. Quem tem assento próprio não pode ocupar o assento comum de usuário que é condição comum de todos. Isto quebraria com a paridade colocada como condição essencial na Lei 8.142/90.

 

Aqui temos a maior polêmica. Historicamente os segmentos mais fortes, com mais poder de manipulação que tem mais informação usam-na, muitas vezes, para dominar a seu favor e não pelo objetivo do coletivo. É fácil para o Governo querer incluir entre os representantes dos cidadãos usuários, pessoas da comunidade que estejam do lado dos governos. Profissionais de saúde e prestadores também querem infiltrar seus membros ou pessoas ligadas a eles neste segmento. Sabemos que todos nós somos usuários e seus legítimos representantes. Entretanto, existe uma exceção lógica que se fundamenta na ética. Se o Conselho tem que manter a paridade entre o segmento de usuários em relação ao conjunto dos outros três segmentos (governo, prestadores e profissionais) isto se justifica na necessidade de se manter o equilíbrio entre as partes. Se um segmento se infiltra dentro dos demais, automaticamente perde-se a independência das partes e consequentemente perde-se a paridade. Por uma questão de princípio ético não se poderia ter entre os usuários pessoas que tenham ligação ou dependam dos outros três segmentos. Isto valeria para todo o Brasil.

 

O Estado de São Paulo, desde 1995, por seu Código de Saúde (Lei 791/95) definiu, de forma clara, a ilegalidade de determinadas representações em meio aos usuários. O Código de Saúde afirma que, para garantir a legitimidade de representação paritária dos usuários, é vedada a escolha de representante dos usuários que tenha vínculo, dependência econômica e comunhão de interesse com quaisquer dos representantes dos demais segmentos do Conselho (Código de Saúde -SP, 68).

 

Vamos clarear estes conceitos pelo Dicionário Houaiss: a) Vínculo: o que liga duas ou mais pessoas; […] regulado por normas jurídicas; b) Dependência econômica: subordinação econômica; sustento de uma pessoa ou de qualquer forma de autoridade, governo, liderança; c) Comunhão de interesse: comunhão; coparticipação, união, ligação, associação, relação de sociedade; de interesse: importância, vantagem, utilidade: moral, material, social. No Estado de São Paulo, por força de lei, e no Brasil, atendendo à ética, seria ilegal ou antiético que representassem usuários: a) Pessoas ligadas ao Governo: prefeito, secretários, cargos em comissão, qualquer funcionário público e seus respectivos parentes diretos; b) Pessoas ligadas aos prestadores: presidente, membros da diretoria e conselhos ou qualquer representante ou indicado e seus parentes diretos de toda e qualquer entidade conveniada ou contratada com a prefeitura e seus empregados; c) Pessoas ligadas aos profissionais de saúde: os profissionais e seus parentes ou funcionários.

 

Existe um pretexto normalmente usado, às vezes pela parte que quer ser indicada, e outras pelos que querem indicá-la: – vamos escolher fulano, porque ele já é da área de saúde e sabe melhor estas coisas que nós não entendemos! E lá vai, mais uma vez, convicto e convencido, o profissional de saúde representando o cidadão usuário na bancada destinada exclusivamente aos usuários. Agora sim, quebrando física e filosoficamente a paridade. Isto retarda o processo de democratização do saber, que, principalmente na área de saúde, é essencial a cada um de nós. O ponto seguinte é a escolha de quem deverá representar os cidadãos usuários em cada município, estado ou no âmbito nacional. As determinações nacionais estão no Art. 194 da CF e na Lei 8.142/90

 

O que queremos é garantir e legitimar a participação efetiva do Controle Social e que de fato ele se estabeleça como princípio e estrutura do poder político, do Estado, porque ações tem sido feitas mas que não tem significado a melhoria dos serviços prestados. Cortes (2002: 127) ressalta que: a maior participação de usuários não garante a redução das iniquidades na promoção de cuidados de saúde para a população. No entanto, a consolidação de fóruns participativos pode auxiliar a democratização das instituições brasileiras, dando voz a setores tradicionalmente excluídos de representação direta no sistema político. O Controle Social foi incorporado à Constituição de 1988, permitindo o exercício de uma cidadania ativa, incentivando as forças vivas de uma comunidade para a gestão de seus problemas e à implementação de políticas públicas destinadas a solucioná-los (GERSCHMAN, 2004). Contudo, sua efetivação tem sido problemática em decorrência de uma estrutura burocratizada, privatista, vertical e centralizadora, que dificulta a gestão social da saúde.

 

Atualmente, na prática, apenas mecanismos institucionalizados, como os Conselhos e as Conferências de Saúde, manifestam-se nesta direção. No entanto, todos os serviços públicos de saúde deveriam funcionar como canal formal e aberto de encaminhamento, proposições e gestão social, por partes dos usuários regulares dos serviços de saúde. Os usuários poderiam influir mais na decisão sobre o destino de recursos públicos no setor saúde, obter informações visando a transparência do serviço, fiscalizar a qualidade da assistência prestada, influenciar na formulação de políticas que favoreçam os setores sociais que eles representam, além de participar de maneira mais efetiva na construção das ações em saúde (CORTES, 2002).

 

Por pensar assim, acreditamos que estamos dando o primeiro passo. Confiamos que estamos na direção certa. Se não consolidarmos um Controle Social que de fato entenda e cumpra com o seu dever, influenciando assim as comunidades, movimentos sociais e todos aqueles que querem um SUS que seja de fato autêntico, inclusivo, equânime e que respeite os princípios, normas e diretrizes que direcionam e regulam o seu funcionamento. Nós acreditamos que, passados 27 anos da constituição e do estabelecimento do Controle Social no SUS, já está mais que na hora de darmos as mãos e caminharmos na direção correta. Ou seja, devemos fazer o correto, o que é preconizado e estabelecido inclusive por Lei. Temos que construir o SUS dentro dos princípios da ética, da preservação da moralidade e do interesse público.

 

 

 

Venerando Lemes de Jesus

Presidente do Conselho Estadual de Saúde

Governo na palma da mão

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