“O pediatra cuida da saúde da criança, é parceiro da mãe”

Há quatro anos, a estudante Daniele Gouveia Anselmo, de 20 anos, precisa deixar Rio Verde, onde mora, para trazer o filho Nicolas, de 4 anos, para uma consulta semestral no Hospital Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento (HMI), em Goiânia. Ela sai às 5 da manhã e passa quase o dia inteiro na unidade. A criança nasceu com um grave problema intestinal, que exigiu uma cirurgia já no primeiro mês de vida, também realizada no HMI. O hospital, que integra a rede da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES), foi – e ainda é – fundamental na vida da criança. Ela revela que, se não fosse o HMI, uma unidade pública, não teria como tratar da criança, muito menos em Rio Verde. Nos bastidores dessa história de final feliz, ganha destaque o protagonismo de um profissional fundamental para a vida de Nicolas e também de milhares de outras crianças, que também têm acesso a um atendimento que não pode ser apenas momentâneo, pontual, nas emergências. Trata-se do pediatra, médico especialista homenageado todo dia 27 de julho pela Sociedade Brasileira de Pediatria e também pela SES, que reconhece a importância desse profissional. Na entrevista abaixo, a diretora técnica do HMI, Sara Gardênia, fala um pouco do papel desse profissional na luta constante pela qualidade de vida das crianças e futuros adultos. Confira.

Como é o perfil do atendimento pediátrico, é basicamente preventivo?

Eu vou fazer, antes, um breve histórico sobre a pediatria, que é uma especialidade da medicina, e não um clínico-geral de criança, como muita gente pensa. Ela compreende desde o primeiro dia de vida até os 18 anos. O pediatra deveria acompanhar todas essas fases. Claro que entre um bebê e um adolescente existem muitas diferenças e, por isso, existem as subespecialidades pediátricas. Por exemplo, a neonatologia, que vai de 0 a 28 dias de vida; em seguida, a pediatria clínica, que vai até mais ou menos até os 11 anos; e, a partir daí, o hebiatra, que é o pediatra que trata o adolescente. Ele (hebiatra) tem que ter um entendimento da mudança que a criança sofre, a parte psicológica, genital, toda a metamorfose que a criança sofre. E quanto mais jovem, maior a necessidade de acompanhamento contínuo. Por isso que temos a puericultura, que talvez seja essa a sua pergunta, sobre prevenção. O ideal é que a mãe, ao saber que está grávida, começa ali a preocupação com a criança, desde a alimentação da mãe, os cuidados com doenças que ela pode ter e que podem interferir no bebê. Deveria começar nessa fase. Hoje, existem até pediatras que fazem pré-natal da pediatria, pessoas que acompanham as gestantes, antes mesmo de o bebê nascer. E, quando ele nasce, existe o minuto de ouro, que é importante para a vida toda.

O que é o minuto de ouro?

Quando a criança nasce, há uma nota para ela, que é a nota de Apgar. Virgínia Apgar – que não era uma pediatra, mas uma anestesista – começou a dar notas para funções como coloração, respiração, frequência cardíaca, reflexos da criança, movimentos. Há notas no primeiro e quinto momentos. E isso faz toda a diferença pro prognóstico da criança. Enfim, a criança nasceu. Após receber essa atenção no minuto de ouro, a mãe vai precisar de um suporte para aprender a colocar o bebê no seio, para saber a importância do aleitamento materno, para conhecer como vai ser a alimentação, o crescimento e o desenvolvimento da criança. Naquele momento, a criança tem que ser avaliada. O ideal é que ela seja avaliada até as 48 horas de vida no hospital, na maternidade. E, a partir daí, a cada mês – a cada 15 dias, no começo, a depender da necessidade, porque às vezes a criança não está ganhando peso suficiente e precisa ser acompanhada, às vezes, (existe) uma icterícia, uma doença infecciosa, logo no começo, e ela precisa de um acompanhamento de rotina. Existem fatores importantes a que o pediatra tem que se atentar. Por exemplo, tem pediatra que consegue identificar autismo logo quando a criança ainda é um nenê. A gente tem que acompanhar mês a mês, depois ano a ano, e a criança vai ficando mais independente, e esse período vai se espaçando e, logo depois, passa a ser um acompanhamento como o de adulto.

É possível esse tipo de atendimento na rede pública, para quem não pode ter atendimento particular ou com plano de saúde?

No serviço público tem mais dificuldade, principalmente pela quantidade de gente (que necessita do atendimento) e pela cultura. Para a mãe, é difícil. Às vezes, trabalha a semana inteira e não consegue levar o filho para uma consulta, e (sem alternativa) tem a emergência. Ela leva pode levar de madrugada. Então a gente tem uma cultura. E as nossas leis também, agora que está se voltando um pouco para o acompanhante, pois a criança precisa de um acompanhante, não pode ir sozinha pro médico, precisa de alguém para orientar. E, às vezes, a mãe passa o dia inteiro esperando uma consulta e precisa do atestado. O serviço público dá o direito (de licença/acompanhante?) ao pré-natal, mas, às vezes, a mãe não consegue entrar no pré-natal; depois, dá direito ao atendimento de puericultura, mas não consegue acompanhar. A mãe começa direitinho, mas abandona… Normalmente, só leva ao pediatra uma criança já com um problema, infelizmente. Em uma criança acompanhada pelo pediatra desde cedo é mais fácil identificar patologias. Não é (como) aquele menino que passou na frente dele (pediatra) só uma vez, com uma dor. O pediatra cuida da saúde. Na verdade, o que está faltando é entender que o pediatra é um parceiro da mãe. A puericultura não é tratamento de doença, é acompanhamento do desenvolvimento. (…)

Mas existe a preocupação de levar sempre a criança ao médico, manter esse acompanhamento?

É possível na rede pública, se a mãe cuidadosa tiver esse atendimento, esse tipo de médico sempre. Existem mães que são muito zelosas. Essas mães costumam dar sequência a atendimentos. Mas são pouquíssimas. Existe até uma solicitação da Sociedade Brasileira de Pediatria para a inclusão do pediatra no programa Saúde da Família. Porque, normalmente, quem está no Saúde da Família não é pediatra, é um clínico, às vezes, nem é um médico com especialidade – o clínico também é uma especialidade. Ele está ali, às vezes não sabe tratar um adulto, muito menos uma criança. Existe um modelo inglês de saúde, que é o modelo Dawsoniano, que propõe solução para o problema da saúde básica com quatro especialistas: um pediatra, um gineco-obstetra, um clínico e um cirurgião. Aqui em Goiânia já houve esse modelo, no passado, e as coisas funcionavam. Mas, de repente, os pediatras começaram a escassear. E você vê o impacto disso aqui no hospital. Se você não vê um pediatra lá na saúde básica, vai para a média complexidade. E isso vai se refletir como? Hospitais lotados, pacientes nos corredores, crianças mal-assistidas, pais revoltados, estresse na equipe médico-multiprofissional. Na verdade, é um problema tão pequeno que poderia ser resolvido lá na saúde básica. Não seria da noite pro dia. Mas com uma saúde básica bem organizada, acredito que nenhuma mãe traria uma criança a ponto de expô-la a ter catapora, meningite, numa emergência.

Quais seriam esse atendimento típico da atenção básica e de que forma essa ausência impacta o HMI?

Vou dar um exemplo: criança tem muito tipo de infecção viral, resistentes e com febre, que é um sinal, não é uma doença. A criança começou a ter febre agora, não adianta levar ela (à emergência) nesse momento – talvez se for para acalmar. Se eu fosse pediatra de uma criança que eu já conheço e ela chegasse no meu consultório com febre, mas ativa, brincando, eu saberia o que era: de repente, só um quadro viral. Eu diria: “Vamos esperar mais 48 horas”. Mas aí a mãe vem para emergência com essa criança febril. Ela vai aguardar na recepção um razoável tempo. Dependendo do dia, pode aguardar de 4 a 6 horas. Por isso, muitos vêm até de madrugada. Aí a criança vai ter contato com outra criancinha que está com meningite do lado dela, porque ninguém sabe. Não está escrito na testa “estou com meningite, estou com catapora”. Já está com imunidade baixa, já está doentinha. Aí, aquela febre que poderia ser uma virosezinha vai virar uma varicela, uma catapora mais adiante. Então, a orientação é que apenas os casos mais graves venham para o hospital – mas para a mãe tudo é grave, né? Mas ela precisa ter o acesso aberto para levar o filho ao atendimento básico. A ideia é esta: ir para a assistência básica, para olhar o ouvidinho, a garganta da criança. Às vezes, apenas o pediatra olhar no olho da mãe, para tranquilizá-la. Então, para o HMI seriam os casos mais graves, convulsões, vômito que não para, tem que tomar soro e tudo. Uma criança que tem diarreia, está com os olhos fundos – e diarreia é uma doença boba, né? Mas mata. Em criança, mata. Mas se uma criança tem lesão na pele há dois meses e vem para a emergência, porque um dia o menino se coçou e sangrou? A emergência acaba realizando um trabalho de triagem, devolvendo a criança para o fluxo. Isso não ocorreria se tivéssemos uma boa saúde básica, com um bom funcionamento pediátrico.

Há carência de pediatras para o bom funcionamento do sistema público?

Qual o problema da Pediatria? É dinheiro. Planos de saúde pagam por uma consulta o quê? 50 reais. Eu não sei, eu não trabalho com plano de saúde. Que sejam 60 reais. Mas se eu fizer uma endoscopia, eu recebo 350 reais. Então, quem procura outras áreas é a pessoa que procura fazer procedimentos? Pediatria não. O que você encontra na pediatra? O idealista, o cara que gosta de criança, que gosta de tratar criança e, infelizmente, quem não está nesse perfil não se adapta. Eu acho que o perfil do pediatra é aquele que gosta mesmo de lidar com a criança e não é só a criança. Ele pega o combo, que é a criança, a mãe da criança, o pai da criança, avó, a babá. Tem a mãezinha humilde que não sabe se comunicar e você vai ter que entrar no mundo dela. Tem o pai estressado…

Ainda sobre a carência na saúde básica, os reflexos ainda estão sendo sentidos no HMI?

Posso dizer que melhorou muito, nos últimos meses. Eu acredito que os Cais voltaram a ter pediatras e isso teve um impacto muito grande aqui na minha porta. Até mesmo atendimento mensal reduziu bastante (colocar os números). E não foi só uma questão cultural. É ter a facilidade de ter um pediatra lá no Cais. Não é porque a mãe é cabeça dura, não. Ela vem aqui se não tiver opção. Na minha porta não deixou de vir, mas diminuiu muitos esse tipo de paciente, que poderia estar aguardando muito no corredor. Agora, são atendidos em outras unidades, e isso é muito importante. Isso mostra também uma boa vontade das pessoas em querer melhorar esse acesso das mães.

Qual a importância da vacinação para as crianças?

A vacinação é tão ou mais importante quanto o pediatra. É de extrema importância. Imagine: a gente conseguiu erradicar a pólio, conseguimos erradicar o sarampo – agora voltou, porque teve uma cepa selvagem na África –, nós conseguimos erradicar a varíola. A importância é grande, é uma importância social muito grande. É uma coisa que vale a pena.

O HMI é um hospital de média e alta complexidade. O que significa?

São atendimentos que necessitam de uma intervenção mais rápida e mais específica. Por exemplo, uma criança que está em iminência de morte, uma criança que precisa de uma subespecialidade pediátrica. No ambulatorial, que faz parte da média e alta complexidade, há um reumatologista pediatra – você não vai encontrar isso na rede básica. Eu tenho aqui, por exemplo, alguém que vai fazer atendimento de alergias alimentares em crianças, um gastropediátrico. Se eu preciso de um profissional nefropediatria, também não vou encontrar isso no Cais, não vou encontrar na rede básica. É para atender casos mais graves.

Qualquer um pode buscar esse tipo de atendimento?

O ideal é que a criança venha via regulação. Por exemplo, um menino diabético vem na emergência, aí eu preciso de um endocrinopediatra, que eu tenho aqui. Eu não vou encontrar um no Cais. Se eu sei que meu filho tem diabetes, eu trago ele direto. Posso até levar se for em um Cais mais perto, mas vou levar numa crise de cetoacidose, né? Mas para o acompanhamento, eu preciso – e meu filho merece – que eu leve ele no endocrinopediatra. E no HMI, esse médico não vai agir sozinho. O atendimento vai passar também por uma nutricionista, um psicólogo, e o paciente ou a mãe vai aprender utilizar as insulinas, por exemplo.

O que é preciso melhorar na pediatria pública?

A coisa que mais precisaria melhorar aqui em Goiânia chama-se regulação. O paciente tem dificuldade de acesso. Por exemplo, uma criança precisa de uma avaliação pediátrica. Qual é a garantia que eu tenho que com 48 horas ela vai conseguir passar por um pediatra, se não quiser pagar por uma consulta? Zero, nenhuma garantia. Às vezes, não consegue agendar. Você já entrou no site para poder agendar? Como é que se chama, netconsultas. Já fiz isso. Às vezes tem vaga, escolhe o médico, escolhe o horário, coloca o número do cartão SUS, mas o cartão não é identificado. Liga para o 0800, porque às vezes o paciente não é de Goiânia, é lá do interior, que não tem o pediatra. Aí ele não consegue, nem aqui, nem lá, porque não consegue entrar na regulação. E vem muita gente do interior sem regular – mas também chega regulado –, chega de outro estado, chega por ambulância, por uber. Chega de todo jeito. A gente procura acolher, mas nem sempre consegue, porque alguns perfis são de baixa complexidade e sem regulação. Por exemplo, uma criancinha do interior do estado, que precisa de uma avaliação com um cirurgião pediátrico. Ele tem uma hérnia de umbigo. Não é urgência, mas a criança está com uma dorzinha e tomou um remédio. É um problema que tem que ser avaliado no ambulatório. O médico dá o encaminhamento, e lá vai o paciente de volta para sua cidade de origem. Chega o paciente lá na secretaria do município e o servidor questiona: “Não conseguiu? Mas você não estava no materno, porque não operou? É um absurdo, uma desumanidade”. Quantas vezes se vê isso… Aí o município tenta, através do complexo Regulador do Estado, por quê? Porque a regulação de Goiânia aqui é estadual e feita pela via regulação municipal. Ele vai conseguir? Não. Por quê? Por que o cartão SUS é do interior? Ele tenta dois caminhos: pede para o vereador, que liga para gente e não consegue fazer nada, porque tem que passar pela regulação. Segundo caminho: faz o cartão SUS aqui, arranja uma tia que mora em Goiânia e faz o cartão SUS – Goiânia tem mais cartão SUS de morador de Goiânia. Por que é como ele consegue marcar consulta. O terceiro caminho, que é o correto, mas muito demorado: ficar esperando ficar em sua cidade, até que a secretaria de lá consiga, via complexo regulador, fazer com que Goiânia coloque o paciente no sistema. Acabou, não? Eu consigo marcar com o cirurgião, mas não consigo marcar um hemograma, um exame de urina, um raio-X de tórax, eu não consigo autorizar a AIH (autorização de internação hospitalar) dele. Então, não tem jeito. É regulação. O acesso é o que precisa melhorar, porque médico bom tem, hospitais bem equipados tem. Vejam o Hugol, o Crer, o HGG. Nós temos hospitais privados que não tem aquelas estruturas. Faz inveja esse tipo de cartão-postal. Mas não adianta eu ter um cartão-postal se eu não consegui colocar o meu paciente lá dentro entende. Eu preciso de melhorar o acesso do paciente.

José Carlos Araújo (texto) e Sebastião Nogueira (foto), da Comunicação Setorial

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