Querem matar o SUS-4: Carreira Nacional do SUS neles!


Paulo Capel Narvai (*)

 

A criação da Carreira Nacional do SUS (CN-SUS) deverá ser aprovada na etapa nacional da 15ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em Brasília, na primeira semana de dezembro deste ano. Ao afirmar isto não faço nenhum exercício de futurologia, nem há qualquer novidade ou originalidade nesta previsão. Trata-se apenas de lógica dedutiva elementar, pois tem sido assim em todas as conferências nacionais de saúde que realizamos desde a criação do Sistema Único de Saúde em 1988. Até mesmo antes disso, na histórica 8ª CNS, em 1986, aprovamos ser necessário o “estabelecimento urgente e imediato de plano de cargos e salários (…) com remuneração condigna e isonomia salarial entre as mesmas categoriais profissionais nos níveis federal, estadual e municipal”. Na 9ª CNS, realizada em 1992, foi aprovada proposta que condicionava “a efetiva implantação do SUS” à “indispensável” criação de “quadros de profissionais de saúde em cada esfera de governo, com a implantação do plano de carreira do SUS” vinculando a ela “todos os trabalhadores do SUS, designando-se, portanto, como carreira multiprofissional ou carreira única de saúde”, garantindo-se que nos processos de gestão do SUS “as funções gerenciais e técnicas sejam ocupadas preferencialmente por funcionários de carreira, com qualificação específica”.

 

Para não cansar o leitor, passando em revista todas as conferências de saúde desde então, registro apenas que uma das 15 diretrizes aprovadas na 14º CNS, em 2011, defendia “uma política nacional que valorize os trabalhadores da saúde”, vinculando-se a esta diretriz, dentre outras, as propostas de: a) “instituir, de maneira pactuada na mesa de negociação permanente do SUS, um Plano de Cargos, Carreira e Vencimentos (PCCV) de âmbito nacional para todos os profissionais de saúde do SUS, com vínculo trabalhista regido pelo Regime Jurídico Único (RJU) e acesso exclusivo por concurso público e que contemple as diferenças regionais”; e, b) “implementar piso salarial nacional para o Sistema Único de Saúde, definido para cada categoria profissional e nível de formação, que seja reajustado anualmente de forma a minimamente repor as perdas inflacionárias”.

 

Constata-se lamentavelmente que as três décadas que separam a 8ª CNS desta 15ª CNS não foram suficientes para mudar significativamente a situação dos profissionais públicos da saúde no País. Há inclusive quem argumente que houve perdas institucionais importantes e que a situação, de modo geral, piorou muito, exemplificando com a extinção de carreiras de saúde em várias unidades federativas e, em nível nacional, com o fim da carreira da antiga Fundação SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), atual FUNASA, dentre outras.

 

Neste contexto a aprovação em dezembro, pela 15ª CNS, de uma Carreira Nacional do SUS pode não significar nada relevante, nem contribuir para transformar esse cenário desolador de precarização, baixos salários e desvalorização profissional. Pode não significar nada relevante, mas não deve, pois o SUS não existe sem os que trabalham no sistema. Três décadas depois, não há mais o que esperar para tirar a CN-SUS do papel. Há alternativas à mesmice, conformismo e paralisia que, por anos, têm dado o tom nos debates e no enfrentamento desse problema. Uma dessas alternativas exige, contudo, ousadia, disposição para mudar, e enfrentamento de muitos SUScidas que se fazem passar por SUSistas. Dentre estes, acomodados em zonas de conforto e pensando apenas em suas bases territoriais, estão algumas lideranças sindicais que vêm “empurrando com a barriga” o enfrentamento dos entraves à Carreira Nacional do SUS. Transformam-se assim, eles próprios, em SUScidas.

 

Os gestores, por seu lado, mesmo quando SUSistas de primeira hora, fogem do tema da CN-SUS como o diabo da cruz. Têm problemas que emergem de um cotidiano administrativo infernal, “apagando um incêndio por dia” conforme se contam nas rodas de conversas entre colegas. Parece bastar aos gestores os enormes problemas e dificuldades derivados das sempre atribuladas relações entre os entes federativos. Representantes de municípios, estados e União vivem às turras uns com os outros ao lidar com a alocação e execução de recursos, e com questões tão díspares quanto o gerenciamento de ambulâncias, combate a mosquitos, organização da assistência, indo da aplicação de vacinas a extrações dentárias, passando por curativos variados, gestão de equipes multiprofissionais de saúde e, em alguns casos, até mesmo filas e execução de transplantes. Nesse cenário, de modo geral, não querem saber nem ouvir falar de CN-SUS. Basta-lhes, dada a exiguidade de tempo, a espinhosa tarefa de lidar com “seus”, digamos… “recursos humanos”.

 

Enfim, o tempo passa e a CN-SUS vai ficando para as calendas gregas…

 

Mas a CN-SUS é de importância estratégica, de interesse vital para o SUS. Por isto, torná-la tecnicamente factível e politicamente viável é mesmo urgente. É uma “urgência” desde 1986, como mencionei. Porém, até que ponto vamos nos dar ao luxo de seguir postergando o enfrentamento, em bases institucionais, dessa urgência?

 

Esteja ou não entre as propostas que a 15ª CNS aprovará em dezembro, é preciso avançar na criação da CN-SUS. Mas, como?

 

Tal como vem sendo concebida pelos SUSistas que se dedicam ao tema, para não permanecer muitas décadas mais sem sair do lugar, a CN-SUS precisa solucionar pelo menos dois pré-requisitos: a) dispor de recursos financeiros para ter sustentabilidade; e b) superar os entraves legais da administração de pessoal no contexto de uma república federativa de dimensões continentais e com entes autônomos. Hoje, nem há recursos, nem há factibilidade técnica no plano administrativo. São duas pendências estratégicas. Sem resolver essas pendências não haverá CN-SUS, no horizonte histórico passível de ser vislumbrado hoje.

 

O que fazer? Seguir remetendo o problema para as calendas gregas? Fingir que ele não existe? Prosseguir valendo-se do “rigoroso método do jeitinho”? É ilustrativo do “rigoroso método do jeitinho” os contorcionismos administrativos adotados por muitos municípios e estados e até mesmo pela União, para burlar restrições orçamentárias e legais impostas à administração direta, seja porque não se dispõem de dinheiro para pagar pessoal, seja porque a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe teto de gastos com este item. O governo federal, que sequer consegue ter no Ministério da Saúde o pessoal de que necessita para exercer sua função de comando do SUS em nível nacional, vale-se de artifícios de gestão via organismos supranacionais para contratar. Surgem, assim, figuras administrativas exóticas no SUS, como “Consultor da UNESCO”, dentre outras esquisitices. Aliás, é suficientemente clara a esse respeito, a modalidade de contratação utilizada para viabilizar o programa “Mais Médicos”, uma prioridade governamental desde sua criação: “via OPAS”, pois a contratação envolve a Organização Pan-Americana da Saúde. Contássemos com uma CN-SUS e nada disso seria necessário.

 

Desde que, em 16/5/15, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é constitucional que recursos públicos sejam transferidos para organizações sociais de saúde (OSS), uma decisão se impõe aos que pensam a situação atual e o futuro do SUS: criar ou não uma organização potente, sob controle público e propriedade estatal, de abrangência nacional, capaz de se institucionalizar como alternativa às OSS, ou sucumbir a elas, rendendo-se definitivamente à privatização.

 

Para enfrentar essas duas pendências estratégicas, estou defendendo, nesta série de artigos “Querem matar o SUS”, duas propostas: a) a criação da CP-SUS (Contribuição para o Financiamento do SUS), para que a Carreira Nacional do SUS disponha pelo menos em parte dos recursos de que necessita para sua sustentabilidade econômica; e b) a criação da EMBRASUS (Empresa Brasileira de Apoio ao Desenvolvimento da Gestão do SUS) que, operando como empresa estatal sem fins lucrativos e com abrangência nacional, tenha características jurídico-administrativas tais que torne desnecessário aos gestores municipais e estaduais do SUS privatizar via OSS.

 

O Brasil tem atualmente cerca de 400 regiões de saúde. A EMBRASUS poderia ter uma direção regional em cada uma dessas regiões, sob controle administrativo dos entes federativos da respectiva região e processos decisórios com base em gestão participativa incluindo, portanto, representantes dos conselhos municipais de saúde dos municípios da região. Tais direções regionais da EMBRASUS concretizariam, finalmente, o que foi proposto em 1986, na 8ª CNS, o “conselho regional de saúde” com “participação plena da sociedade no planejamento, execução e fiscalização dos programas de saúde”.

 

Embora o SUS seja responsável por feitos notáveis na saúde pública brasileira, os profissionais responsáveis por esses feitos não se sentem “trabalhadores do SUS”, mas “funcionários da Prefeitura”, “servidores do governo do Estado”, uma vez que são estes que lhes pagam os vencimentos. Não há, portanto, identificação funcional com o SUS. Esses profissionais de saúde “vestem outra camisa” e não a “camisa do SUS”, conforme se diz. Ninguém (com exceções, claro) se sente “do SUS” e, portanto, os rumos e o destino do sistema não lhes diz respeito, não lhes significa nada. E isto é, sem dúvida, mais um desastre simbólico envolvendo o sistema (outro desastre simbólico é o que diz respeito ao ocultamento do símbolo do SUS). Mas, para mais além do plano simbólico, a não vinculação a uma organização de base nacional, que viabilize exercer atividades profissionais em qualquer ponto do território nacional, sem perder a vinculação funcional, e que disponha de um plano de cargos, funções e vencimentos (uma carreira, enfim), decididos democraticamente com participação dos próprios trabalhadores, é muito prejudicial aos profissionais de saúde. A esse respeito é esclarecedor, a propósito da dimensão simbólica e das limitações de desenvolvimento profissional, o modo como as OSS recrutam e contratam os diferentes profissionais de saúde. Nenhuma palavra sobre o SUS. Tudo se passa como se as contratações não envolvessem recursos do SUS e como se não fosse para trabalhar profissionalmente no SUS. Também nessas situações não há identificação funcional com o SUS, mas com a OSS “X” ou “Y”. Nesse processo, o SUS some, desaparece.

 

Ouso afirmar que, sem a Carreira Nacional do SUS, vinculada a uma forte instituição estatal de abrangência nacional, o SUS vai mesmo sumir. Ou, o que teria igual significado, pode se transformar em uma péssima caricatura de si mesmo.

 

(*) PAULO CAPEL NARVAI é professor titular de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).


Fonte: CEBES

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