Conhecimento para combater o Zika
Renan Rigo, da Assessoria de Comunicação Social da Fapeg
O universo científico é movido a perguntas. São por meio delas que são definidas problemáticas, hipóteses e ideias a serem investigadas, debatidas até que a ciência encontre caminhos e perspectivas. Em alguns casos, muito especiais, essas perguntas chegam em caráter de urgência e mobilizam um desdobramento maior de pesquisadores e estudiosos ávidos por encontrar respostas. São questões ligadas diretamente à vida. São respostas que podem salvar vidas. Com a recente epidemia do vírus Zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, em todo o globo, com maior gravidade em casos distribuídos pelo território brasileiro, ficou ainda mais evidente a necessidade dessas questões de saúde pública serem trabalhadas de modo a encontrar soluções eficientes. A ciência ainda é o maior repositório de conhecimento. E nessa emergência, nossos cientistas já estão empenhados em transpor barreiras para, senão encontrar respostas imediatas, saber ao certo quais as perguntas a serem respondidas.
Goiás tem se destacado nessa ação de enfrentamento à epidemia. Uma das maiores autoridades no assunto, a pesquisadora Celina Maria Turchi Martelli é goiana e trabalha, atualmente, no Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Pernambuco, na coordenação do estudo que avalia os fatores de risco de microcefalia pela infecção do vírus Zika. Ex-professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), ela atua na linha de frente junto a pesquisadores de todo o Brasil para conhecer mais sobre a dinâmica do vírus e as formas como ele se relaciona com o organismo humano. No entanto, o cenário ainda é obscuro até mesmo para os cientistas. A doença tida como benigna até pouco tempo, com sintomas brandos, se agravou no Brasil, com registro de complicações mais graves, especialmente quanto ao desenvolvimento de microcefalia em fetos e neonatos após a infecção da gestante, por meio do mosquito. “Do ponto de vista científico, o vírus Zika ainda é pouco estudado porque estava restrito à sua circulação em algumas regiões do mundo. O conhecimento até o presente momento sobre o vírus é escasso. Se fôssemos comparar, enquanto em um período de dez anos é possível que a gente tenha centenas de milhares de artigos científicos publicados, relacionados ao Zika nós tínhamos apenas 40 artigos.
Essa situação se complicou ainda mais, segundo a pesquisadora que é especialista em epidemiologia, uma vez que o que se conhecia sobre o vírus Zika eram infecções assintomáticas e que os casos sintomáticos tinham pequena gravidade do ponto de vista de causar óbitos. Ela explica que só recentemente, há cerca de três anos, fora registrada uma epidemia na Polinésia Francesa que mostrou que o vírus era capaz de causar reações imunes e Síndrome de Guillain-Barré, que afeta funções motoras que podem levar o indivíduo à morte. “Além disso, naquela epidemia não foi relatado nenhum caso de transmissão vertical, nem de microcefalia. Então, no Brasil, nós estávamos frente a uma doença desconhecida do ponto de vista de causar uma infecção congênita (transmissão materno-fetal), realmente de muita gravidade, no qual os instrumentos que a gente tinha para pesquisa de diagnóstico ainda precisavam ser desenvolvidos”, salienta. Somou-se a isso o fato do vírus Zika ser da mesma família do vírus Dengue, que são flavivírus, e, nesse caso, pessoas que já haviam sido expostas aos vírus dengue faziam reação cruzada para o anticorpo do Zika, o que dificultava ainda mais a aplicação dos testes.
O ineditismo brasileiro
De acordo com Celina Martelli, o histórico do vírus Zika no Brasil remonta aos primeiros meses de 2015, quando ficou evidente que no País havia a circulação de um vírus que era pouco diferente do Dengue, mas que não tinha ainda um sistema de notificação próprio. Chegou-se a se identificar o Zika, na Bahia, na época, mas ainda com essa noção de benignidade. Foi então, conforme recorda a professora, que mora atualmente em Recife (PE), que os hospitais neurológicos da região metropolitana registraram um aumento acentuado da Síndrome de Guillain-Barré, 20 dias após o pico da epidemia da circulação desse vírus. “Se dizia que era uma dengue similar, mas os médicos sabiam que não era dengue, pois o exantema (erupções cutâneas vermelhas) era diferente”, relembra. Do ponto de vista clínico e temporal, os infectologistas e os neurologistas tinham a percepção de que o Zika vírus tinha chegado ao Brasil, sendo documentado junto às autoridades ainda no primeiro semestre.
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Logo depois, mulheres grávidas expostas no mesmo período começaram a gerar crianças com o perímetro encefálico e características diferentes, o que segundo a pesquisadora era bastante atípico em outras doenças genéticas, especialmente pelo aumento no número de casos em um mesmo lugar. Então, em agosto de 2015, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, alertada pelos médicos, começou a fazer uma rede de avaliação em torno desses casos. A atenção ao problema estava, definitivamente, instalada. Os casos ganharam as páginas internacionais e a professora Celina, paralelo a um esforço e uma mobilização com cientistas e redes de todo o Brasil e até mesmo de outros países, se viu imersa em uma problemática de proporções mundiais. O The New York Times chegou a ouvi-la em uma reportagem especial sobre como um mistério médico levou os cientistas brasileiros até o Zika. O planeta estava atônito com a velocidade e as proporções tomadas pela doença.
Metodologia científica e agilidade na tomada de decisões
Sem titubear diante da preocupação instalada, os cientistas brasileiros começaram a se organizar internamente no País e acionar grandes redes de pesquisa para que todos se debruçassem sobre os caminhos a seguir. “Tendo em vista da decretação do estado de emergência em saúde pública, que é um ato raro de governo, todos nós pesquisadores nos mobilizamos para pensar quais perguntas devem ser feitas e construir projetos para se responder essas questões”, enfatiza. Foram definidas então três grandes áreas, sob a ótica da epidemiologia da doença: avaliação de gestantes, desenvolvimento de testes laboratoriais em grande escala e identificação de uma vacina para o Zika.
A partir daí, pesquisadores das diversas regiões do Brasil intensificaram seus trabalhos a fim de direcionar ações de pesquisa para o estudo do vírus Zika, aproveitando de suas estruturas. Em Goiânia, por exemplo, há um braço da rede de pesquisa em dengue, firmada por meio do edital Pronex – Rede Dengue, que tem trabalhado muito integradamente com o grupo da Fiocruz, inclusive com bolsistas de pós-doutorado em intercâmbio nos laboratórios da instituição. O edital foi lançado em 2009 e financiado com recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Saúde e das Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs), incluindo a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg). “É importante já termos pesquisadores com expertise em dengue, por exemplo, já com esse contato prévio, porque essa formação de redes é um processo que leva tempo. Os pesquisadores precisam construir essa rede, fazer contatos e haver uma confiabilidade no trabalho para montar projetos conjuntos”, reforça Celina.
Uma das pesquisadoras que trabalha à frente dessa rede, em Goiás, é a professora da Faculdade de Farmácia da UFG, Valéria Christina de Rezende Féres. A pesquisadora, que é uma das bolsistas do pós-doutorado, realizado em parceria com a Fiocruz de Pernambuco, explica que o grupo de pesquisa da Universidade Federal de Goiás vem trabalhando com a dengue desde 1994, quando houve a introdução do vírus Dengue 1, em Goiânia. “Este estudo avaliou 632 pacientes com suspeita de infecção pelo vírus Dengue, em 2013, no ano de ocorrência de uma das maiores epidemias de dengue na cidade de Goiânia (GO), o que permitiu aprofundar o entendimento sobre o cenário epidemiológico da doença em Goiás, por meio da avaliação clínico-epidemiológica e laboratorial dos casos dos pacientes com dengue”, explica.
Valéria Féres cita a estruturação do Laboratório de Biologia Molecular e Técnicas Aplicadas de Diagnóstico Laboratorial (Biotec), da Faculdade Farmácia da UFG, por meio de recursos do Pronex Rede Dengue, como fator decisivo para o desenvolvimento da pesquisa no Estado e sua contribuição para a rede, que envolve, além de Goiás, outras ações em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Minas Gerais. “A estrutura do nosso laboratório, que nesse caso ocorreu com a contrapartida da Fapeg, foi essencial para o desenvolvimento do projeto, assim como o Libitec da professora Lucimeire, que também teve o auxílio em termos de equipamentos. Então nós temos uma estrutura montada hoje em função disso”, enfatiza.
Segundo Valéria, com esse edital foi possível desenvolver todo o trabalho com a dengue durante quatro anos de pesquisa e agora, em 2016, com o pós-doutorado, a continuidade se dará com os desdobramentos da pesquisa, que envolverá um sequenciamento completo de última geração dos quatro sorotipos do vírus da dengue. “Como o Brasil tem registrado a ocorrência da transmissão de arbovírus, que causam sintomas semelhantes, dentre eles o Dengue, Chikungunya e Zika vírus, o diagnóstico laboratorial tornou-se fundamental para a confirmação das diferentes causas das doenças que cursam na região”, explica. “A infraestrutura de pesquisa existente, a expertise dos pesquisadores da UFG e da Fiocruz Pernambuco, junto com as parcerias firmadas com a Secretaria Estadual de Saúde e a Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, possibilitam estudos sustentados especialmente sobre o Zika vírus, que priorizem o conhecimento do potencial epidemiológico desse vírus na região, a confirmação diagnóstica das gestantes infectadas, a caracterização e o monitoramento da diversidade genômica e outros desdobramentos em pesquisa”, complementa.
Para a presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg), Maria Zaira Turchi, a existência prévia dessas redes contribuiu para que, em um momento de emergência como o que vivemos, essas equipes se articulassem de forma mais ágil, estruturando projetos robustos que consigam acompanhar o tempo necessário para o desenvolvimento eficaz da pesquisa. “São essas redes que têm capacidade instalada, possibilidade de interlocução nacional e internacional, e que conseguem, portanto, captar recursos mais rapidamente e se articularem para que as equipes formadas e construídas por essas redes possam acelerar os estudos em uma pesquisa que exige respostas ágeis e uma ação mais imediata”, salienta. “Investimentos no cotidiano das pesquisas, nas rotinas de instalação dos laboratórios, no apoio às redes de pesquisadores, nacional e internacionalmente, são absolutamente fundamentais para a ciência poder dar respostas emergenciais e eficazes a essas situações”, complementa.
Tempo de pesquisa
Apesar da diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margareth Chan, em recente visita ao Brasil, ter dito que a crise provocada pelos surtos de Zika e microcefalia “pode piorar antes de melhorar”, com o aparecimento de casos de microcefalia em outros estados brasileiros, os especialistas apontam que é nesse momento que os esforços da ciência precisam se concentrar em entender a fundo o vírus e sua relação com o organismo humano. “Março geralmente é o pico da epidemia da dengue e a gente acredita que, por possuírem características semelhantes, também seja o pico para o vírus Zika. Então, temos que agilizar e já estamos agilizando para ver, como ação de vigilância, a forma de atender essa população neste momento. Estamos fazendo todos os esforços para conseguir obter uma amostragem agora e desenvolver os estudos ao longo do ano”, analisa a pesquisadora da UFG, Valéria Féres.
Conforme explica a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz de Pernambuco, Celina Martelli, essa epidemia tem ensinado que a instalação de uma emergência em saúde pública faz também com que os processos de avaliação dos projetos sejam mais rápidos. “No nosso estudo caso-controle, solicitado pelo Ministério da Saúde, a avaliação pelos comitês de ética do Brasil e da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) foi realizada em menos de 15 dias, quando normalmente levaria de cinco a sete meses. Mesmo assim, para se ter um resultado preliminar, só daqui cinco ou seis meses. Apesar de já termos conseguido dinheiro emergencial de outros países, como o Reino Unido, agora que começaram a sair editais para a pesquisa com recursos e financiamentos no Brasil, específicos para o Zika vírus”, alerta. Ela ressalta que na ciência as hipóteses são testadas por metodologias específicas de trabalho muito bem estabelecidas, que geram evidências e tem seu tempo definido. “É um processo um pouco demorado por envolver questões éticas, de saúde pública, que precisa ser muito bem alinhado com o atendimento das secretarias de saúde, para que também não haja uma ‘exploração’ dos pacientes, dessas mães”, pontua.
Para a presidente da Fapeg, Zaira Turchi, Goiás tem conseguido avançar muito bem nesse trabalho com o investimento contínuo, não só em estruturação de laboratórios, mas também na formação de pesquisadores altamente qualificados e capacitados, especialmente na área da saúde. “Temos diferentes editais, além do Pronex, que têm contribuído para a consolidação da nossa pesquisa como referência. O que precisamos, e não é só a Fapeg, mas o Brasil como um todo, é desenvolver mecanismos para poder fazer um financiamento mais ágil e liberar esses recursos rapidamente, como outros países já conseguem fazer”, aponta.
A questão dos marcos legais, que se adequam à realidade da pesquisa brasileira, ainda precisa ser mais bem definida, de acordo com Zaira Turchi, que também é vice-presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap). “O novo código de Ciência, Tecnologia e Inovação representa um marco regulatório extremamente importante para viabilizar o desenvolvimento do que interessa, em chegar a resultados relevantes em pesquisa científica e tecnológica, não só na saúde, mas em todas as áreas do conhecimento, para melhorar o desenvolvimento socioeconômico e a qualidade de vida da população”, recomenda.