Pesquisa valida instrumento de baixo custo para detecção de atraso no desenvolvimento de coordenação motora em crianças
O Teste será disponibilizado para o SUS e poderá ser utilizado em escolas e centros de saúde pública
Helenice Ferreira, da Assessoria de Comunicação da Fapeg
Uma sala de aula pode ser uma caixinha de surpresas. Nos primeiros anos de escolarização, um olhar atento da equipe pedagógica pode ajudar a identificar crianças com algumas dificuldades motoras ao realizar tarefas cotidianas como pegar algum objeto, usar tesoura, desenhar, escrever (disgrafia: problemas com a formação das letras – deformação das letras, espaçamento irregular, inversões e rotações das letras; problemas com a fluência – escrita muito lenta e laboriosa), praticar esportes envolvendo habilidade de equilíbrio, atividades com bola, ao se comparar com o desenvolvimento de outras crianças da mesma faixa etária.
São dificuldades motoras que ocorrem na ausência de diagnósticos físicos ou neurológicos conhecidos. Em geral, os principais sinais são lentidão e imprecisão, e esse atraso motor pode levar a criança a ser rotulada como preguiçosa, descoordenada, desmotivada, desajeitada e, além de problemas de aprendizagem ela pode desenvolver complicações no campo social, emocional e comportamental, ficando mais suscetível a sintomas de depressão, isolamento social, de fracasso e frustração na adolescência e fase adulta. Por isso, quanto mais precocemente o problema for identificado, menor será o impacto na vida dessas crianças. No Brasil, o termo mais usado para denominar essa alteração é o Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC).
Quando uma criança é diagnosticada com TDC, além da orientação familiar é papel da escola promover atividades que estimulem a coordenação motora. Em alguns casos, a criança pode ter necessidade de um acompanhamento psicopedagógico de apoio e até mesmo de encaminhamento para outros profissionais como terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e profissional de educação física.
Até se chegar à fase do “tratamento”, a criança tem que passar por instrumentos que validem a detecção do TDC, porém, os instrumentos disponíveis são de alto custo e a grande maioria deles é adquirida por compra internacional e exige um treinamento por meio de curso com instrutor experiente, o que demanda tempo e custo elevado e muitas vezes, inviabiliza o uso em escolas públicas e no atendimento ligado ao Sistema Único de Saúde.
Ciência a serviço da população
Após dois anos de pesquisa, finalizada em abril deste ano, foi validado um instrumento de baixo custo para triagem do desempenho motor de crianças em idade escolar para auxiliar na detecção do TDC no ambiente de escolas públicas. O projeto foi coordenado pela professora Cibelle Kayenne Martins Formiga, da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Unidade Escola Superior de Educação Física e Fisioterapia do Estado de Goiás (Eseffego). A pesquisa contou com fomento do Governo de Goiás, por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg), no âmbito do Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS). Além do fomento por meio do edital do PPSUS/2017 no valor de R$ 50 mil, o projeto contou com apoio financeiro da Fapeg e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) na concessão de bolsas de mestrado e doutorado dentro do projeto.
“O nosso objetivo foi ousado, mas fazemos ciência a serviço e em benefício da sociedade”, comenta a professora Cibelle Formiga. Ela explica que a proposta de sua equipe foi aplicar um teste simples e prático, utilizado frequentemente em adultos, que é o Teste de Sentar-Levantar (TSL) do chão, para verificar se ele possui validade concorrente com a escala internacional Movement Assessment Battery for Children (MABC-2) para ser usado na detecção de crianças com TDC. O Teste de Sentar-Levantar consiste em sentar no chão e em seguida levantar-se do chão sem o uso dos braços para realizar o momento. O teste avalia componentes motores como equilíbrio, coordenação motora, flexibilidade dos membros inferiores e relação entre potência muscular e peso corporal, também sendo considerado com avaliação de aptidão física.
Em geral, as crianças que frequentam escolas públicas são provenientes de famílias com menor poder aquisitivo, de classes sociais menos favorecidas e expostas a diversos riscos psicossociais. A proposta do projeto de pesquisa foi atuar junto a essas crianças de maior risco social para atrasos e desvios em seu desenvolvimento, no sentido de avaliá-las e orientar sobre os conceitos que envolvem o crescimento e desenvolvimento infantil e em como manter um ambiente e atividades adequadas e estimulantes, explica Cibelle Formiga. “O princípio desta pesquisa está inserido nos conceitos de vigilância em saúde que abrange a prevenção primária e promoção de saúde aplicáveis ao Sistema Único de saúde do Brasil”, ressalta a pesquisadora.
Resultados encontrados
Ao analisar os resultados entre os dois testes utilizados, MABC-2 e TSL, foi possível observar que o TSL consegue evidenciar comprometimentos do equilíbrio e pode colaborar na identificação de dificuldades motoras. Isso destaca que o TSL pode ser utilizado em escolas públicas e centros de saúde pública para triar o equilíbrio de crianças de 7 a 10 anos no âmbito do Sistema único de Saúde (SUS), analisa a professora.
Os dados coletados com 243 crianças de três escolas públicas da rede estadual, em Goiânia, com idade entre sete e dez anos que completaram a avaliação da coordenação motora pelos testes usados, indicaram que 137 crianças (56,4%) apresentam coordenação dentro do esperado para idade, 42 (17,3%) apresentam dificuldade motora significativa e 64 (26,3%) foram classificadas como “risco” (necessidade de monitorar a criança para identificar possíveis comprometimentos futuros). Essa classificação pode auxiliar na identificação do TDC.
“Verificamos que o nosso índice de comprometimentos motores foi alto, porém dentro do encontrado nos estudos realizados em alguns estados brasileiros. Esse resultado nos surpreendeu inicialmente, mas depois descobrimos que o excesso de peso pode estar relacionado ao alto índice. Isso ressalta a importância de ter atenção à composição corporal das crianças e intervir quando necessário”, comenta a professora Cibelle Formiga. Estudos no Brasil mostram uma variação de 6 a 17,8% da prevalência de TDC em crianças entre quatro e 11 anos de idade.
Detectar precocemente o TDC em crianças escolares é uma medida preventiva que pode ser de grande aplicabilidade para o SUS, uma vez que problemas na saúde e desempenho escolar das crianças podem ser evitados por meio de estratégias de prevenção em saúde, entende Cibelle Formiga. “É importante ensinar às crianças estratégias para compensar sua dispraxia motora, dando-lhes oportunidades adequadas para praticá-las. Assim profissionais da saúde podem ajudar os responsáveis, a família e a criança a compreender melhor sua descoordenação”, afirma a pesquisadora.
A pesquisa
Ao realizar a pesquisa foram considerados itens como coordenação motora, desempenho funcional, equilíbrio, habilidades motoras, composição corporal, imagem corporal, qualidade de vida, flexibilidade, entre outras variáveis. Ao final das avaliações foi realizada a entrega dos relatórios dos resultados das avaliações para os pais e para as escolas. Nessa etapa dos trabalhos de pesquisa, foi ministrada uma palestra em cada escola participante com orientações para identificação de problemas na coordenação motora e formas de estimulação da coordenação e desenvolvimento infantil. Foi preparado e entregue um folheto informativo com dicas e sugestões de atividades para serem realizadas em casa com a criança.
Os pais das crianças que apresentaram dificuldades na coordenação foram orientados para melhor estimular seus filhos. “O envolvimento entre família e escola é um forte aliado na prevenção de problemas no desenvolvimento das crianças”, ressalta Cibelle Formiga. As crianças que participaram da pesquisa tiveram a autorização dos responsáveis por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme solicitação do Comitê de Ética.
A equipe
Assim, a pesquisa cumpre seu papel de contribuir para o desenvolvimento social e para a disseminação do conhecimento. “As crianças são uma população frágil e intervenções como essas possibilitam a identificação de sinais e estimulação do desenvolvimento minimizando atrasos. Além disso, fornece base para que os pais possam estimular corretamente o desenvolvimento de seus filhos”, comenta a fisioterapeuta e doutoranda da Universidade Federal de Goiás (UFG) Thailyne Bizinotto, que conduz o projeto, orientada pelo professor Celmo Celeno Porto (Faculdade de Medicina/UFG) e pela professora Cibelle Formiga.
A equipe de pesquisa é composta ainda por três graduandos do curso de Medicina (Faculdade de Medicina/UFG), nove alunos de Iniciação Científica (IC) do Curso de Fisioterapia (UEG-Eseffego), dois alunos do Programa de Mestrado em Ciências Aplicadas a Produtos para a Saúde (PPGCAPS/UEG) e uma aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde (PPGCS/UFG).
“O curso de Fisioterapia da UEG tem grande potencial de pesquisa e produção científica. Por meio da parceria entre Universidade e Fapeg é possível colocar em prática os nossos projetos a serviço da sociedade e produzir ciência de qualidade. O apoio da Fapeg foi fundamental para a execução da pesquisa”, finaliza a professora Cibelle Formiga.