Mamífero mais antigo do Brasil viveu no tempo dos dinossauros
Mamífero mais antigo do Brasil viveu no tempo dos dinossauros Brasilestes stardusti existiu há mais de 70 milhões de anos atrás no atual Estado de São Paulo. Descrição foi feita a partir de dente fossilizado e publicada na Royal Society Open Science (foto: Mariela Castro)
Mamífero mais antigo do Brasil viveu no tempo dos dinossauros
30 de maio de 2018
Peter Moon | Agência FAPESP –
Brasilestes stardusti. Assim se chama o mais antigo mamífero conhecido para as terras brasileiras. Viveu entre 87 milhões e 70 milhões de anos atrás no fim da era Mesozoica, onde hoje é o noroeste do Estado de São Paulo. Trata-se do único mamífero brasileiro que, sabe-se até o momento, conviveu com os dinossauros.
A descoberta de Brasilestes foi anunciada nesta quarta-feira (30/05) pela equipe do professor Max Langer, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo, que teve apoio de colegas da Universidade Federal de Goiás, da Universidade Estadual de Campinas do Museu de La Plata e do Massachusetts Institute of Technology.
Brasilestes foi descrito a partir de um único fóssil: um dente pré-molar de 3,5 milímetros. “O dente de Brasilestes é pequeno e se encontra incompleto, pois lhe faltam as raízes”, disse a paleontóloga Mariela Cordeiro de Castro, a primeira autora do trabalho que acaba de ser publicado na Royal Society Open Science.
“Pequeno mas nem tanto. Apesar de só ter 3,5 milímetros, o dente do Brasilestes é três vezes maior do que quase todos os dentes conhecidos de mamíferos do Mesozoico. No tempo dos dinossauros, a maioria dos mamíferos tinha o tamanho de camundongos. Brasilestes era bem maior: do tamanho de um gambá”, disse Castro.
O nome da nova espécie homenageia o roqueiro inglês David Bowie, morto em janeiro de 2016, um mês após a descoberta do fóssil. Brasilestes stardusti faz alusão a Ziggy Stardust, ou Ziggy “poeira estelar”, personagem vindo do espaço que Bowie criou para uma canção de 1973.
O trabalho contou com apoio da Fapesp e integra o Projeto Temático “A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico)”, coordenado por Langer.
O dente fossilizado encontrado em rochas da Formação Adamantina que afloram no meio de um pasto na fazenda Buriti, em General Salgado (SP).
“Estávamos visitando afloramentos mesozoicos quando Júlio Marsola [outro membro da equipe] teve um olhar de lince e avistou um dente minúsculo aflorando na superfície da rocha”, disse Castro, professora na Universidade Federal de Goiás, em Catalão. “Brinco que, naquele dia, ele gastou a sua quota de descobertas extraordinárias para toda uma vida – e olha que ele nem estuda mamíferos, mas dinossauros.”
“Quando penso que alguns grupos de pesquisa chegam a peneirar uma tonelada de sedimento pra achar um único fragmento de mamífero do Mesozoico, acredito que Mariela tenha razão, e que eu tenha de fato gastado toda minha sorte. Mas espero sinceramente que não”, brincou Júlio Marsola, pesquisador da FFCLRP-USP.
“Os depósitos de General Salgado são bem conhecidos. De lá já saíram vários crocodilos mesozoicos. O afloramento em particular onde achei Brasilestes é interessante, com dezenas de fragmentos de cascas de ovos daqueles crocodilos. Ao me debruçar em uma parte do afloramento para ver o que possivelmente tinha de cascas de ovos, me deparei com o dentinho. Se permanecesse mais alguns dias exposto, a chuva levaria embora”, disse Marsola.
“Quando percebi algo como a base das duas raízes do dente [as raízes em si estão quebradas], achei que fosse um mamífero. Depois de analisar em laboratório, tivemos a certeza de que se tratava de um mamífero”, disse.
Placentário no deserto Botucatu
À primeira vista, um mero dente de 3,5 milímetros – ainda por cima incompleto – pode parecer muito pouco para descrever uma nova espécie de mamífero. Não é. É comum se ver mamíferos extintos descritos com base no estudo de um único dente.
Isso se deve ao fato de que o material que constitui os dentes é o mais resistente do esqueleto dos mamíferos, pois precisa resistir ao desgaste provocado pela mastigação durante toda a vida do animal – diferentemente dos peixes e de inúmeros répteis, por exemplo, que trocam dentes ao longo da vida.
Por serem muito duros e resistentes, os dentes são os restos do esqueleto mamífero com maiores chances de preservação após a morte do animal. Com frequência, são os únicos a permanecer intactos por tempo suficiente para ter chance de fossilizar. Há muitos exemplos de espécies extintas de mamíferos, inclusive de ancestrais do ser humano, descritas com base em um único canino ou molar.
A singularidade e a incompletude do pré-molar de Brasilestes impedem que os pesquisadores distinguam com absoluta confiança a qual grupo de mamíferos a espécie pertencia. Sabe-se que o dente saiu da boca de um tério, ou seja, de um membro do grande grupo que congrega marsupiais e placentários.
Muito embora não haja evidências suficientes para sustentar a inclusão de Brasilestes em um grupo ou outro, ainda assim os especialistas têm a impressão, sem afirmar categoricamente, de que Brasilestes teria sido placentário. E isto é completamente inusitado.
Há atualmente três grandes grupos de mamíferos: placentários, marsupiais e monotremados. Os três grupos evoluíram no Mesozoico. Porém, naquele tempo, estavam longe de ser as únicas formas de mamíferos. Havia diversos outros grupos, como os multituberculados comuns no hemisfério Norte, e grupos típicos do hemisfério Sul, como meridiolestídeos e gonduanatérios – alusão ao Gondwana, o antigo supercontinente austral que reunia América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártica.
Desde o início dos anos 1980, quando começaram a ser achados os primeiros fósseis de mamíferos mesozoicos na Patagônia argentina ( hoje são conhecidas cerca de 30 espécies, as únicas do continente até o anúncio de Brasilestes), jamais se descobriu nada remotamente parecido com o dentinho brasileiro.
“Quando mostrei o fóssil de Brasilestes ao paleontólogo Edgardo Ortiz-Jaureguizar, do Museu de La Plata, ele ficou muito surpreso, afirmou nunca ter visto nada parecido, e correu para mostrar o fóssil a outro especialista daquela instituição, Francisco Goin”, disse Castro. “A reação foi idêntica. Goin afirmou que Brasilestes não se parecia com nenhum outro mamífero mesozoico achado na Argentina – vale dizer, na América do Sul.”
Entre as cerca de 30 espécies de mamíferos mesozoicos argentinos, há meridiolestídeos, gonduanatérios e até mesmo, suspeita-se, um ou outro multituberculado. Mas nenhum marsupial nem placentário. Os fósseis desses dois grupos só começam a surgir no registro fóssil sul-americano após a extinção em massa que exterminou com os dinossauros há 66 milhões de anos, evento que põe fim ao Mesozoico e dá início à era atual, o Cenozoico.
Até a descoberta de Brasilestes, os únicos vestígios de mamíferos mesozoicos no Brasil se resumiam a centenas de trilhas e pegadas deixadas por criaturas desconhecidas que caminhavam há 130 milhões de anos sobre as dunas do antigo deserto Botucatu, que cobria o interior de São Paulo. A superfície de tais dunas, solidificada, chegou aos nossos dias sob a forma de lajes de arenito onde se veem as antigas pegadas.
Em 1993, Reinaldo José Bertini, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro, chegou a anunciar a descoberta de um fragmento de mandíbula de mamífero portando um único dente – e muito menor que o pré-molar de Brasilestes. Bertini, porém, não publicou um estudo minucioso daquele fóssil, nomeando assim uma nova espécie.
“Temos assim que Brasilestes, além de ser o primeiro mamífero descrito para o Mesozoico brasileiro, também é um dos poucos mamíferos mesozoicos descobertos em regiões mais centrais da América do Sul, dado que os fósseis argentinos foram achados em formações geológicas na Patagônia, portanto no sul do continente”, disse Langer.
“Não bastasse isso, Brasilestes difere de tudo o que se encontrou antes dele, indicando que possivelmente mamíferos placentários habitavam a América do Sul entre 87,8 milhões e 70 milhões de anos atrás”, disse Langer.
O mais inusitado é que o mamífero mesozoico com pré-molares mais parecidos com os do Brasilestes viveu do outro lado do mundo, na Índia, entre 70 milhões e 66 milhões de anos atrás. Chamava-se Deccanolestes. Nenhuma outra criatura do registro fóssil mundial guarda tamanha semelhança com Brasilestes.
O que dois membros da mesma linhagem estariam vivendo em regiões tão afastadas e não conectadas? Há cerca de 100 milhões de anos, ao mesmo tempo em que a América do Sul e a África acabavam de se separar definitivamente com a abertura do Atlântico Sul, a Índia cortava suas amarras do Gondwana e começava a vagar pelo oceano Índico.
Isso implica que, até pelo menos 100 milhões de anos atrás, ancestrais de Brasilestes e Deccanolestes povoavam o supercontinente Gondwana. Ou seja, a linhagem de Brasilestes e Deccanolestes é muito mais antiga do que a idade de seus respectivos fósseis: entre 87 milhões e 70 milhões de anos para Brasilestes, e entre 70 milhões e 66 milhões de anos para Deccanolestes.
“A descoberta de Brasilestes suscita muito mais dúvidas do que respostas sobre a biogeografia dos mamíferos mesozoicos sul-americanos. Graças a Brasilestes, descobrimos que a história dos mamíferos de Gondwana é mais complexa do que se supunha”, disse Langer.
Disso podem brotar novas hipóteses e surgir novas linhas de investigação. Quem sabe, por exemplo, futuras pesquisas disparadas a partir da descoberta de Brasilestes não venham a desvendar a origem ainda desconhecida de um grupo típico da América do Sul: os xenartros, a ordem dos tatus, tamanduás e preguiças? Por sinal, a especialidade de Mariela Castro é a história evolutiva dos xenartros.
“Um traço interessante do pré-molar de Brasilestes é a espessura do seu esmalte, superfino, com apenas 20 mícrons. O esmalte de Brasilestes é o mais fino para os dentes de quaisquer mamíferos do Cretáceo no registro fóssil. A maioria dos dentes de mamíferos mesozoicos tem esmalte com espessuras entre 100 e 300 micrômetros”, disse Castro.
“Entre os xenartros, conhecem-se dezenas de espécies viventes e centenas de extintas. Somente três possuem esmalte. Dois tatus extintos e o tatu-galinha (Dasypus novemcinctus), o único xenartro vivente com esmalte. A microestrutura do esmalte do pré-molar de Brasilestes e dos pré-molares do tatu-galinha é muito parecida”, disse.
Segundo a paleontóloga, “a evidência do relógio molecular sugere que a linhagem dos xenartros surgiu há pelo menos 85 milhões de anos. Porém os fósseis mais antigos de tatus, achados no Rio de Janeiro, têm cerca de 50 milhões de anos”.
Embora seja bastante sugestivo imaginar Brasilestes como um antigo xenartro, ainda é muito cedo para fazer qualquer afirmação nesse sentido.
“Embora a idade e a proveniência de Brasilestes coincidam com hipóteses moleculares para a origem dos xenartros, a inferência da afinidade taxonômica é prematura diante das diferenças morfológicas entre o dente de Brasilestes e os dentes de tatus”, disse.
Langer concorda. “Só temos um único fóssil de Brasilestes. Seu registro é por demais incompleto para extrair novas conclusões”, disse.
Como nunca antes de Brasilestes foram encontrados fósseis de mamíferos mesozoicos no Brasil, isso pode significar que tais fósseis são raros ou de difícil preservação. “Quem sabe um dia encontremos novos fósseis de Brasilestes que ajudem a entender melhor sua história. Pode levar décadas”, disse Langer.
O artigo A late Cretaceous mammal from Brazil and the first radioisotopic age for the Bauru Group, de Castro MC, Goin FJ, Ortiz-Jaureguizar E, Vieytes EC, Tsukui K, Ramezani J, Batezelli A, Marsola JCA e Langer MC, está publicado pela Royal Society Open Science em http://rsos.royalsocietypublishing.org/lookup/doi/10.1098/rsos.180482.
Fonte: Agência Fapesp – Peter Moon