Racha: um convite para a morte
“Depois do pardal, um rachinha. Bora, bora logo!”. Ele tem apenas 18 anos, pilota uma moto potente e parece ignorar ou desafiar o perigo. O jovem, ainda sem habilitação, fica extasiado ao participar de uma competição que pode ser fatal. O “convite” feito a dois amigos tem como palco a GO-020, no trecho entre Goiânia e Bela Vista, próximo ao Autódromo. Na pista, nosso personagem que não será identificado, atinge a impressionante marca de 212 quilômetros por hora – mais que o dobro da velocidade máxima permitida (80km/h) – como mostra o vídeo gravado por ele mesmo. O único barulho que se ouve é o ronco dos motores.
Ao longo do percurso, ele também empina a moto, o que é considerado manobra perigosa pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A filmagem estava na câmera GoPro acoplada ao capacete apreendida pela titular da Delegacia de Investigação de Crimes de Trânsito (DICT), Nilda Andrade, durante operação realizada em parceria pelas Polícias Civil e Militar na mesma rodovia para combater a prática, que configura crime previsto no Artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), com pena de seis meses a três anos de prisão. Em caso de lesão corporal ou morte, é maior.
O resultado foi a prisão em flagrante de oito pessoas que participavam da competição automobilística e de 18 que estavam na ‘plateia’, aplaudindo o comportamento exibicionista. Elas responderão a um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) por incitação ao crime. A ação foi motivada pela morte de Weder Alvarenga, de 24 anos, no último dia 2 de setembro, também ocorrida na GO-020.
A vítima pilotava uma moto e foi atingida por um carro depois que o motorista freou ao passar por um radar, perdeu o controle da direção e desviou para o acostamento, provocando a colisão. Weder foi arremessado a 100 metros e o veículo ficou destroçado em algumas partes (veja foto). A polícia suspeita que os dois estariam fazendo racha. Nas redes sociais, ele se mostrava como um apaixonado por motos e em uma das fotos se exibe empinando o veículo.
Outro caso envolvendo um jovem, o estudante de Direito Gabriel Santana Dorelli Cintra, de 22 anos, filho de um desembargador de Goiânia, ganhou repercussão. A polícia investiga se ele também estaria em um racha. O estudante, que já tinha antecedente por direção perigosa, voltava de uma festa na madrugada do último 14 de setembro com o irmão e um amigo e conduzia o carro em alta velocidade até se chocar contra uma árvore na Praça Ciro Lisita, no Setor Coimbra, em Goiânia. O veículo ficou destruído. Gabriel não usava cinto de segurança e morreu a caminho do hospital. O motorista do outro carro negou que participava de uma competição, em depoimento à polícia. Ele recusou fazer o teste do bafômetro.
Encontro mercado
O encontro tem dia, hora e local marcados. Segundo a delegada Nilda Andrade apurou, geralmente às terças e quintas-feiras à noite, jovens de classes média e alta praticam o perigoso “hobby” ostentando veículos potentes e de luxo, sejam carros ou motos. Eles se comunicam por grupos de redes sociais e se reúnem em postos de combustíveis. De lá, partem para as GOs-020 e 040, esta na saída para cidade de Aragoiânia. É um comportamento exibicionista.
A delegada repreende os casos de imprudência, que podem resultar em acidentes com morte ou pessoas com sequelas graves. Nos dois casos citados não se pode concluir que houve racha devido à falta de provas, o que também justifica a falta de estatísticas sobre esse assunto. “Eu não entendo porque essas pessoas não se profissionalizam e vão competir em lugares apropriados e não em rodovias ou vias urbanas. Falta conscientização tanto dos condutores que expõem a própria vida quanto a dos meros espectadores. Vamos continuar intensificando as operações e investigar para chegar aos organizadores”, afirma.
Punição
Além da prisão em flagrante, essas pessoas estão sujeitas ao pagamento de uma fiança, que varia de um a seis salários mínimos, além de multa no valor de R$1915,40, apreensão do veículo e da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). No entanto, o valor das multas, conforme pondera Nilda, não está inibindo esses condutores justamente por causa da classe social que ocupam.
Jovens são movidos pela sensação de prazer
A psicóloga especialista em Gestão de Pessoas ecoaching Andrea Scodro Soubihe avalia que os condutores são movidos pela “sensação de prazer e poder, por estarem no controle da situação”, principalmente quando se trata de jovens que estão sendo observados e aplaudidos. Mesmo tendo que seguir regras para viverem em sociedade – as leis de trânsito especificamente – Andrea questiona até que ponto elas estão internalizadas e cita dois tipos de risco: o objetivo e subjetivo. O primeiro é baixo porque a pista (GO-20) é duplicada, bem sinalizada e iluminada. Já o segundo está relacionado ao quanto ele está disposto a se arriscar para alcançar essas sensações e como compreende esse perigo, o que revela uma certa imaturidade, como enfatiza.
Mudança de comportamento
A mudança de comportamento passa por uma educação que precisa ser direcionada a esse público. “A ação educativa é muito importante, mas tem que ser voltada para os jovens dessa faixa etária, utilizando tanto imagens como informações que os atraiam para gerar uma mudança, caso contrário nem vão atentar para ela. Outro ponto é a família, que também influencia na forma como apresenta o mundo ao filho ou a outro representante e, por fim, a minha pergunta é se esses jovens estão dispostos a abandonar essas emoções para mudarem suas percepções”, indaga.
O gerente de fiscalização do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO), coronel Júlio César Mota, afirma que são tomadas medidas educativas e também repressivas para prevenir tal prática. O serviço reservado da corporação tem monitorado as redes sociais para identificar os “pilotos”, que segundo ele, buscam satisfazer essa necessidade de adrenalina nas vias públicas.
Estão sendo realizados bloqueios em pontos próximos às GOs 020 e 040 e às vias próximas a um condomínio de luxo de Goiânia. No entanto, Mota defende um endurecimento das punições administrativas e penais. “São pessoas que vêm de uma classe que tem mais acesso ao conhecimento, e mesmo assim procuram andar à margem da lei, arriscando não só a própria vida como a vida e o patrimônio de outras pessoas. Isso quase sempre termina em tragédia”, sentencia.
Educação familiar tem poder de transformação
Por meio de ações como campanhas educativas realizadas em escolas e também envolvendo os meios de comunicação, o órgão espera obter uma conscientização por parte dos condutores sobre a importância do respeito à legislação de trânsito, embora sejam essas ações a longo prazo.
Mota garante que, sozinho, o Poder Público não consegue mudar essa realidade. “É preciso alcançar os pais que oferecem de uma forma gratuita essa ‘arma’ na mão desses jovens sem lhes dar o preparo de cidadão para transitarem numa via. A maioria dos problemas e soluções hoje passa pela família. Se cada uma cuidar dos seus, e desde o momento em que ele estiver fazendo a aula para habilitação, ele entender que o veículo é um ótimo bem para satisfazer as suas necessidades, tanto para o trabalho quanto para o lazer. Mas que, se usado indevidamente, se transformará numa perigosa arma”, conclui.