#TBT da ABC – Uma carta para o futuro: a Constituição da liberdade
Emendas populares, discussões acaloradas e um discurso de promulgação sobre cidadania, inclusão e justiça social. A Constituição de 1988 buscou apagar as marcas profundas de anos de um regime de exceção, garantindo um cenário de segurança e longevidade jurídica e política, luta que se faz presente até a atualidade
Qual impacto um livro pode ter sobre a sociedade? Profundo, se pensarmos que o texto pode representar mais que uma narrativa para os indivíduos, apresentando-lhes toda sorte de ordenamentos e regras para a vida em comunidade. Quanto maior a comunidade, maior a quantidade de aspectos das relações sociais que precisam de intermediação e normas para que aconteçam de forma aceitável. É nesse prisma que as constituições surgem inicialmente.
As primeiras constituições surgem no desejo de limitar o poder dos reis sobre os indivíduos. É nesse sentido que surge a primeira constituição escrita e pensada como tal, a Carta Magna inglesa de 1215. Posteriormente são exigidos mais direitos pelos indivíduos e então surgem textos como a Bill of Rights inglesa de 1688, a constituição sueca de 1722, a constituição americana de 1787 e o principal exemplo de constituição no mundo contemporâneo: a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1791, que surgiu como constituição da recém instaurada República Francesa, que havia destronado a monarquia absolutista e sua visão de Estado (toda sua estrutura e mesmo sua população) como propriedade da família reinante.
As pressões das populações por constituições que limitassem o poder monárquico não são ignoradas no Brasil, já que é por conta de revoltas que desejam uma constituição para Portugal que a coroa portuguesa – na figura de D. João VI – se vê obrigada a voltar para a Europa e deixar aqui um representante (pois na época, o Brasil não era mais só uma colônia, e sim Reino Unido, o que exigia um regente para esse espaço político), D. Pedro. Esse mesmo representante, agora alçado ao papel de “imperador do Brasil” e nomeado D. Pedro I, vê também o papel de uma constituição para a nação recém-independente.
É assim que surge a primeira das oito constituições brasileiras. Cada uma delas teve algum aspecto que mostra sua adaptação à situação política e social do momento. Houve constituições impostas, como as de 1824 (a única do período imperial), a de 1937 (inspirada em trechos da constituição polonesa, “oficializava” a ditadura varguista, chamada de “Estado Novo”, instituindo a pena de morte e censura prévia às comunicações e às manifestações culturais, assim como o fim da federação e dos estados como entidades autônomas, simbolizado com a queima das bandeiras estaduais) e a reforma constitucional de 1967 (sob a tutela dos militares), assim como houve constituições feitas por representantes eleitos, como as de 1891 (que mantém o impedimento de voto as mulheres e “desvalidos”), 1934 (a mais curta das constituições), 1946 e a atual, de 1988.
Várias questões que hoje parecem bem resolvidas e sem discussão e direitos diversos só foram obtidos e garantidos na lei por meio das discussões acaloradas nos corredores do Congresso Nacional, quando do esforço entre 1986 e 1988 para a elaboração de uma Carta que retirasse traços ditatoriais que foram incorporados à constituição vigente durante os 21 anos anteriores, como os atos institucionais.
A constituição de 1988 teve ainda um aspecto muito importante, que foi a mobilização popular para apresentar propostas de leis. Essas depois de avaliadas, puderam ser incorporadas ao texto. Foram 122 emendas populares que possibilitaram a diversos grupos registrarem como viam a interferência dessa nova constituição em suas vidas e buscassem garantir melhores condições para a coletividade.
A constituição de 1988 traz leis como da criação do Sistema Único de Saúde, declaração da tortura e das ações armadas contra o estado constitucional como crimes inafiançáveis, direitos sociais às mulheres, aos indígenas e aos negros, além de proteção ao meio ambiente. Também restabeleceu eleições diretas para todos os cargos do executivo (presidência, governadoria e prefeitura), assim como eleições em 2 turnos e o voto para os analfabetos. Garantiu também jornada de trabalho de no máximo 8 horas por dia e no máximo de 44 horas semanais (anteriormente eram 48 horas), licença maternidade estendida e o surgimento da licença paternidade de 5 dias (antes, era de um único dia), assim como seguro desemprego e a determinação do recebimento de um terço do salário quando funcionário sai de férias, unificação dos valores dos salários mínimos regionais, estruturas de previdência e os deveres do estado para com a população, como alimentação, transporte e educação.
Dentre as mudanças no cotidiano direto dos indivíduos, podemos apontar o surgimento do estado do Tocantins. Reivindicação antiga da população local, a divisão do estado de Goiás em duas unidades federativas acabou sendo oficializada como uma disposição transitória (que deixa de existir quando realizada), assim como a transformação dos “territórios federais” do Amapá e Roraima em estados. A criação do estado tocantinense mudou o mapa do país e criou espaço para novas atividades, descentralizando mais um pouco o poder decisório local, criando novas cidades e novas fronteiras para a indústria e a agricultura.
Nesse processo de elaboração da nova “lei maior” do Brasil, algumas personagens são importantes. Entre eles, o mais destacado foi Ulisses Guimarães. Político de longa data, considerado como conservador e conciliador, ele foi o responsável por evitar que arroubos dos militares e de alguns políticos que não viam com bons olhos as mudanças propostas presentes na nova carta a prejudicassem. Articulador, conseguiu atrair para o movimento que encaminhou os trabalhos da constituinte tanto figuras do chamado “centro” quanto da esquerda, que havia conseguido eleger 10% da representação total do congresso na eleição de 1986. Foram essas forças que apoiaram o “Senhor Diretas”, como ele era conhecido, na elaboração da constituição desde seus detalhes mais ordinário, já que a carta foi escrita do zero, não sendo usada nenhuma outra como base inicial.
A Constituição Cidadã já foi bastante modificada, mas os preceitos de liberdade dos quais ela emergiu ainda estão presentes e muitos indivíduos buscam garantir que ela não seja apenas um texto bem elaborado, mas sim base para ações efetivas no cotidiano social, político e econômico dos brasileiros.
Givaldo Corcinio – ABC Digital