Muito mais que um retrato do Brasil: Brasília como sonho, função e reflexão

Para construir Brasília, foi preciso muito mais do que os mil dias de obras durante o governo Juscelino Kubitschek. Ela moveu sonhos para o Planalto Central, transformou um país inteiro e acabou sendo a projeção de como o Brasil se quer ver e um reflexo de como ele é de fato

Um devaneio, uma loucura ou uma obra faraônica. Brasília é rotulada com uma série de adjetivos que muitas vezes acabam reduzindo o que podemos entender que esta cidade talvez seja a obra pública mais transformadora do cenário social brasileiro em nível nacional.

Mesmo que Brasília não seja considerada um “retrato” do Brasil (neste sentido o Rio de Janeiro ainda tem prevalência no imaginário das pessoas), sua presença no Planalto Central mudou a face do país não só no aspecto técnico, com a adoção de novas técnicas e conhecimentos (por exemplo o uso do aço e do concreto na construção civil), mas também no aspecto do conhecimento do próprio país pelos brasileiros.

Origem e existência mítica

É muito comum quando se fala de Brasília a citação da “profecia de Dom Bosco”. O padre italiano João Belchior Bosco, fundador da congregação dos salesianos, registrou diversas profecias sobre assuntos ligados prioritariamente a fé católica. Fugindo dessa temática, existe um apontamento específico sobre a América do Sul, onde existiria uma terra de riquezas incalculáveis e “torrentes de leite e mel” localizada entre os “graus 15 e 20” (Brasília está localizada nas coordenadas 15°46 Sul, 47°55 Oeste).

Mas esse relato mítico que remete aos sonhos de Dom Bosco não é a única narrativa que reúne elementos atribuindo a Brasília e mesmo ao Planalto Central um papel especial na construção de uma “nova civilização”. De tal feita, na região é muito presente manifestações e ajuntamentos religiosos e místicos, reunindo elementos de diversas culturas, locais e estrangeiras, de diversas temporalidades.

Para quem era do litoral, isso aqui tudo era mato

Longe dos relatos míticos, Brasília tem uma história longa mesmo antes de sua inauguração, em 21 de abril de 1960. A mudança da capital administrativa brasileira está aventada desde o período colonial. Diferente do que possa parecer, o governo português tinha uma atenção especial sobre a administração do espaço. Determinações para construção em diversas cidades de norte a sul do território, sendo notáveis Belém do Pará, Macapá, Porto Alegre, Barcelos e João Pessoa.

Apesar disso, não houve movimentações para a mudança da capital antes da proclamação da primeira constituição republicana, em 1891. Nela são definidas as primeiras ações para a demarcação do território para a nova cidade. Por situar-se no centro geográfico do país, Goiás recebe as expedições designadas para definir a localização da “nova capital para o novo regime”. Especialmente a chamada “expedição Cruls” que chegou em 1892 no território goiano, passou por cidades que já estavam estabelecidas como Pirenópolis, Planaltina de Goiás e Brazlândia, serviu para descrever não só o lugar onde futuramente seria erguida Brasília e as cidades-satélite (essas não planejadas, mas fundamentais para a execução da obra) mas também o espaço do cerrado mineiro e goiano, documentando flora, fauna e a geografia da região, pouco conhecido pelas pessoas das cidades litorâneas do sudeste e nordeste.

Brasília antes de Brasília

Com a definição do quadrilátero Cruls, começam a aparecer planos para a nova cidade. Alguns, produzidos por iniciativa privada, visavam aproveitar uma possível valorização das terras ou refletiam desejos de consolidação de símbolos da república e da História.

Este é o caso do plano de “Brasília, cidade histórica da América”, elaborado em 1929 por Theodoro Figueira de Almeida, que tinha um plano que lembra um casco de tartaruga e onde as ruas e alamedas receberiam nome de vultos da história, como Tiradentes, Simon Bolivar, Barão de Mauá. José Bonifácio ou de eventos, como as praças da República, Abolição, Independência e Conquista

Outro exemplo é a “cidade de Vera Cruz”, promovida por iniciativa do governo federal em 1955, que reuniu três engenheiros brasileiros de renome (Raul Penna Firme, Roberto Lacombe e José de Oliveira Reis) e começou a delinear verdadeiramente o interesse pela mudança da capital, meses antes da abertura do concurso que escolheu em definitivo o plano para Brasília.

Mudanças para trazer novidades

Mudanças de capital não são eventos incomuns na história dos países. Nesse momento, por exemplo, Egito, Coréia do Sul, Omã, Guine Equatorial e Indonésia estão nesse processo de construção e mudança. Assim como outras nações que construíram novas capitais, como EUA, Canadá, Austrália ou Nigéria, a busca em geral era por conseguir um espaço que representasse uma sociedade equilibrada entre poderes, neutra em relação as pressões de grupos já estabelecidos e que fosse um marco de modernização, transformação e por vezes pacificação do país.

Brasília não foi uma obra completamente desconectada do Brasil e de sua história, que aparece na segregação e desigualdade social que podemos presenciar ao circular pela terra que, se não tem torrentes de leite e mel como profetizou Dom Bosco, a despeito das críticas, moveu forças e energias políticas e sociais que transformaram o cerrado brasileiro e, em última instância, modificaram o país como um todo.

Givaldo Corcinio – historiador – ABC Digital

Governo na palma da mão

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