Diário do Isolamento XXII – “O que as manchetes nos trazem”
Mas o espírito humano é teimoso, e o poder do homem de fazer bem ao outro felizmente é tão grande que acaba transformando as vidas também
"Eu gostaria de te contar uma revelação que tive durante o meu tempo aqui. Ela me ocorreu quando eu tentei classificar sua espécie e me dei conta de que vocês não são mamíferos. Todos os mamíferos do planeta instintivamente entram em equilíbrio com o meio ambiente. Mas os humanos não. Vocês vão para uma área e se multiplicam e se multiplicam, até que todos os recursos naturais sejam consumidos. A única forma de sobreviverem é indo para uma outra área. Há um outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão. Você sabe qual é? Um vírus”.
Essas palavras são parte do discurso que o Agente Smith, o antagonista de Matrix, faz ao acorrentado Morpheus. Como era uma inteligência artificial, tinha, como podemos dizer, distanciamento suficiente para fazer uma avaliação dessas. Desde quando vi essa cena nos cinemas – e isso estamos falando do século passado, crianças – me peguei por várias vezes a relembrá-la ao ver verdadeiras atrocidades que já cometemos contra este planetinha ou até a nós mesmos já há algum tempo, mas que ficam mais evidentes durante estes dias de desafios constantes.
Só de dar uma olhadinha básica na linha de tempo da História, podemos ter uma ideia de como o ser humano pode ser egoísta, mesquinho e brutal; descontando a Pré-história, onde os humanos não tiveram papel expressivo – apesar de avanços como a descoberta do fogo e a agricultura – foi somente a partir da invenção da escrita pelos sumérios, ali pelos 4.000 a.C, que a História realmente começa, sendo portanto, classificada como “História Antiga”. Esta vai daí até o ano 476 d.C, com a queda do Império Romano do Ocidente. A seguir, temos a “Idade Média”, que dura até 1453, com a queda de Constantinopla ou o Império Romano do Oriente. Entramos então na “Idade Moderna” que perdura até 1789, com a Revolução Francesa. Vem à tona a “Idade Contemporânea” que perdura até nossos dias, embora alguns estudiosos defendam uma “Pós-Contemporânea” que seria a partir do lançamento das bombas atômicas no fim da Segunda Grande Guerra.
Vejam bem, tirando a invenção da escrita, 4.000 anos antes de Cristo, todas as outras mudanças de era foram baseadas em guerras ou revoluções. O poder do homem de fazer mal ao outro é tão grande que acaba transformando sua própria caminhada evolutiva. Olhando assim, o DNA da humanidade parece realmente predisposto a fazer o que é mal, que cada um de nós cuida somente do próprio umbigo. Olhando algumas das manchetes recentes, o temor das comprovações se faz presente:
- “Empresário escapa de quarentena e leva Covid-19 para sul da Bahia” – depois que seu diagnostico deu positivo para o novo coronavírus, simplesmente fez a mala e viajou, mesmo tendo tido a recomendação médica para se recolher. O governo baiano fez uma representação jurídica contra ele;
- “Paciente agride médico ao receber diagnóstico positivo de Covid-19” – com o pandemônio criado por essa doença, natural que as pessoas se assustem ao se descobrirem infectadas, mas daí a bater no médico vai longe, bem longe;
- “Em Rondônia, pessoas testam positivo para Covid-19 após irem à Coronafest” esta fica na classificação de que poderia ser cômica, não tivesse provocado outra manchete, esta na casa das trágicas: “26 profissionais de Saúde são afastados após terem contato com paciente infectado na Coronafest em Porto Velho”.
Mas o espírito humano é teimoso, e o poder do homem de fazer bem ao outro felizmente é tão grande que acaba transformando as vidas também e as boas ações seguiram a evolução da pandemia, passo a passo: em 13 de fevereiro, quando o mundo assistia a China contar casos e mortos, acompanhando vídeos assustadores de pessoas desmaiando nas ruas, o Japão enviou 20 mil máscaras e termômetros infravermelhos para os chineses e nas caixas estava escrito o seguinte verso “Embora estejamos em lugares diferentes, temos o mesmo céu”, parte de um poema antigo que relata a amizade duradoura entre os dois países.
Quando o epicentro da infecção se mudou para a Europa, os chineses repassaram a boa ação, enviando aos italianos milhares de máscaras e nas caixas afixaram frases de um poema do filósofo romano Sêneca: “Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim”.
E vem por conta das crianças – sempre elas – uma das mais singelas ações já tomadas nestes últimos dias. Na Austrália, uma garotinha de 09 anos, Taylah enviou uma carta a ninguém menos que o Primeiro Ministro com os dizeres: “Ouvi dizer que o Sr. Morrison disse que ninguém pode entrar na Austrália por causa da Covid-19 e a Ilha de Páscoa é um país estrangeiro. O Coelhinho da Páscoa poderá vir este ano?”
Ao que respondeu prontamente o ocupante do cargo, Mark McGowan: expediu rapidamente uma “Eggs-emption” (um trocadilho em inglês com as palavras “Egg” [ovo] e “Exception” [Exceção]), para que o Coelhinho da Páscoa pudesse atender as crianças australianas.
Deve ser muito bom morar em um país em que seu governante tem um senso de humanismo e humor assim.
Fiquem seguros.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital