Diário do Isolamento XX – “O bêbado e o analista”
Segundo alguns especialistas, a atual pandemia poderá fazer com que o modo de vida que tínhamos até 2019 sofra uma espécie de naufrágio e que depois do vírus tudo poderá ser diferente.
Charles Joughin tinha 33 anos quando foi contratado para ser padeiro-chefe por uma grande companhia marítima. Tendo dois irmãos marinheiros, além do fato de ter nascido em Birkenhead e residir em Liverpool – duas cidades portuárias inglesas – era natural que também escolhesse o mar como destino. Casado, tinha dois filhos.
Masabumi Hosono era um funcionário do Ministério dos Transportes Japonês, que retornava de viagem após pesquisar sobre ferrovias no exterior. Com 41 anos, casado e pai de uma menina, parecia estar em um bom momento de sua carreira.
Estes dois homens, cada um à sua maneira, tiveram a mesma experiência: ambos sobreviveram ao naufrágio do Titanic. Entretanto, enquanto a história de um foi louvada e retratada posteriormente, o outro viveu no ostracismo depois de ter sido alvo de profundo desprezo por anos em seu país.
Joughin, por fazer parte da tripulação do navio, teve acesso mais rápido às reais condições do desastre, porém, desde o momento do choque, viu que seu dever ainda era para com os passageiros, então juntou uma pequena equipe e começou a preparar pães para os botes salva-vidas. Ao mesmo tempo, aproveitou para, entre uma cesta e outra, beber o máximo possível de whisky (o que viria a ser providencial depois).
Hosono, único japonês a bordo, foi acordado junto com outros passageiros aproximadamente 30 minutos depois do choque. Enquanto o restante deles ainda não tinha como saber que o navio já estava condenado, ele, por ser analista e ter conhecimento técnico de embarcações, sabia que em caso de colisão o risco sempre existe e decidiu subir ao convés para averiguar. Foi isso que o salvou.
O padeiro, com os bolsos cheios de pequenas garrafas de bebida, após servir os mantimentos, ajudou a embarcar passageiros nos botes – chegando, dizem, a puxar “delicadamente” algumas moças relutantes para dentro deles – mas a maioria ainda não acreditava que o barco não fosse resistir. E ainda teve a ideia de jogar as cadeiras de praia no mar, para que os que caíssem no mar tivessem em que se segurar. Várias pessoas afirmaram depois que Joughin foi um dos últimos a deixar o navio. Depois disso, ele ficou por volta de duas horas boiando na água próxima de -2º C, até ser resgatado por um bote. Seu corpo resistiu por conta da quantidade absurda de álcool que havia ingerido antes, durante e depois do naufrágio.
Já com Masabumi as coisas ocorreram de forma bem diferente: tendo conseguido chegar ainda cedo ao local de lançamento dos botes viu que, por conta do frio e da incredulidade quase geral no afundamento, vários botes estavam saindo ainda com bastante espaço. Ao descerem o Bote nº 10, o tripulante que comandava aquela ação, olhou ao redor e não vendo nenhuma mulher ou criança por perto, disse somente: “Espaço para mais dois!”. O japonês e outro homem não identificado ocuparam então esses lugares, totalizando 39 pessoas em um bote que poderia levar até 65.
A história de “um cozinheiro bêbado que me ajudou” foi contada por muitos sobreviventes e acabou entrando para o imaginário popular: consta em vários livros e ao menos dois filmes sobre o trágico destino do Titanic: no blockbuster de 1997, o homem visto ao lado do casal Jack e Rose foi concebido em sua homenagem. Joughin continuou a trabalhar em navios até se aposentar, em 1944, tendo inclusive sobrevivido a outro naufrágio, em 1920.
Ao funcionário público quis o Destino que alguns jornais da época carregassem nas tintas, retratando-o como alguém que, para fugir de uma morte certa, havia tomado o lugar de mulheres e crianças. Por conta disso, sofreu o que os japoneses chamam de “Murahachibu”: uma punição por atentado a lealdade. Apesar de continuar em seu serviço, foi rebaixado e sua versão de que havia subido no bote somente porque ninguém mais se apresentava nunca veio a público. Somente depois do sucesso de James Cameron, sua família foi procurada e pôde levar a publico a carta que Masabumi escreveu ainda no navio, relatando toda a tragédia. A propósito, tal carta é o único texto escrito em papel timbrado do Titanic a sobreviver ao tempo.
Segundo alguns especialistas, a atual pandemia poderá fazer com que o modo de vida que tínhamos até 2019 sofra uma espécie de naufrágio e que depois do vírus tudo poderá ser diferente. Nosso trato com o meio ambiente, as relações tanto interpessoais como de consumo deverão ser revistas; os parâmetros para deslocamento de pessoas entre os países e até mesmo o turismo poderá se transformar depois de um trauma que certamente afetará toda essa geração. Assim como as pessoas dos anos 1910 o foram pelo desastre daquele transatlântico.
Vale lembrar que grande parte de sua fama do Titanic não decorre somente de seu afundamento, mas também das várias analogias que foram feitas por conta dele: como os mais abastados foram beneficiados pelos serviços de socorro, a maioria esmagadora dos sobreviventes vinha da 1ª classe, enquanto que a 2ª classe e tripulantes “preencheram alguns vazios”, raros foram os passageiros da 3ª classe que se salvaram.
No Brasil, apesar de o vírus ter chegado com pompa de “coisa de rico” – uma vez que grande parte dos primeiros infectados foram pessoas abastadas que tinham condição para tirar férias no exterior – a cada dia que passa podemos ver que ele se espalha por todas as áreas, sem se importar com o CEP ou a importância do lugar. Mas, espelhando também 1912, agora em 2020 aqueles com maiores recursos tem também melhores cuidados à sua disposição.
E, como se tudo isso ainda não bastasse, ainda temos o embate entre o titular da pasta da Saúde e aquele que enverga a faixa presidencial, sobre quais rumos o combate à pandemia devem tomar.
Apesar de várias apostas já estarem sendo feitas, só o tempo dirá qual – ou se algum deles – será o personagem a ser lembrado por suas ações e aquele que irá sofrer o desprezo geral dos sobreviventes.
Fiquem seguros.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital