Diário do Isolamento XIX – “As vozes e as sacadas”

…sou desses sujeitos que tem a excêntrica mania de fazer solilóquios, longos monólogos ou até discussões inteiras com os meus botões.

Um dos melhores livros de contos já publicados é o delicioso “A falta que ela me faz”, de Fernando Sabino, que dispensa maiores apresentações. Já perdi a conta de quantas vezes o li, muito por conta de pérolas como “Falando Sozinho”. Após um preâmbulo bem leve, como quem abre a porta da casa e lhe convida para tomar café, ele “inicia o causo” citando o crítico Alexander Woolcott, para quem “o escritor é um homem que passa a vida inteira conversando consigo mesmo, e cujo o único consolo é que a conversa no decorrer dos anos vai se tornando mais interessante” (Evidente que essa premissa também vale para as escritoras). Só depois disso tudo é que, como bom mineiro, ele adentra realmente o assunto, das agruras de quem conversa sozinho… E foi justamente isso o que me veio à cabeça ontem de tarde, ao ser flagrado tendo uma dessas conversas em plena calçada e sem chance de esboçar uma boa desculpa.

Mas acho que me adiantei em algum ponto e devo retornar para explicar algo importante: assim como no conto do Sabino, sou desses sujeitos que tem a excêntrica mania de fazer solilóquios, longos monólogos ou até discussões inteiras com os meus botões. Em suma, assumo, sou maluco mesmo. No começo isso era só uma forma de trabalhar melhor meus argumentos, esse fato de verbalizar o que pensava. Com o tempo, as avaliações de outros pontos de cada fato acabaram por desenvolver uma voz própria – talvez no sentido de simular um debate com outra pessoa. Daí para a conversa franca foi um pulo e disso ao trocar insultos, um escorregão.

Isto posto, após passar toda uma semana resguardado em casa, a fim de seguir as orientações sanitárias necessárias nestes dias, tinha chegado a hora de repor parte dos mantimentos, especialmente as verduras, até porque, não consigo cozinhar sem cebolas.

Então estava lá eu do lado de fora do mercadinho, aguardando minha vez de entrar. Aproveitei para ter uma palavrinha comigo, uma vez que não estava convencido de que pantufas foram a melhor escolha para sair, nestes tempos de Estrada da Fúria:

“Devia ter vindo de coturno, calçado de guerra, entende?”

“Ah, mas pantufas são muito confortáveis: dane-se se os outros estão rindo!” 

− Na verdade, acho que devem rir é dessa máscara de Pepe Legal… 

O sinal do Pinel apitou naquele momento: tudo bem conversar sozinho no meio da rua, mas até então minha voz interior não era tão diferente assim. Olhei para os lados, não havia ninguém, estavam todos dentro do mercadinho. Ainda dei uma olhada no caixa para ver se a voz viera de lá, mas a fila composta por velhinhas mascaradas e a atendente franzina, também com o rosto recoberto, mostrava não ser ali a origem. 

“Podia jurar que havia outra pessoa falando por aqui”

− Bom, além de você, tem eu, o que faz com que isso agora seja um diálogo. 

Percebi então de onde vinha a tal voz: como a venda fica no andar térreo de um pequeno edifício, da sacada do primeiro andar, espichado em uma cadeira de balanço, um senhorzinho desses que parecem ter visto de tudo na vida me observava de modo divertido – até onde sua máscara me deixava perceber.

Aqui voltamos naquele momento em que lembrei Sabino, seu conto, Woolcott, minha vergonha por ter sido flagrado conversando sozinho e o alívio por me perceber um maluco relativamente normal, dentro de minhas circunstâncias. 

Aproveitando que ainda aguardaria um tempo, acabamos por entabular conversa, coisa rara de se fazer na rua, nestes tempos de distâncias perturbadoras.

Primeiro, obvio, falamos do atual estado das coisas, sobre a pandemia que virou o cotidiano pelo avesso, os erros e acertos de cada país e de como está sendo difícil ficar separado da família e amigos. Falei que com as atuais tecnologias, isso era algo que dava para ser ao menos driblado em partes, por vídeo ou chat, ao que ele respondeu ser “um cachorro velho demais para aprender esses truques de internet”. Expressei então minha preocupação com esse nosso inimigo invisível. 

Nesse momento, o senhorzinho, de ares orientais, ajeitou os óculos de maneira docente, explicando que era professor de faculdade aposentado da área de biologia. E emendou, filosófico:

− Veja bem, esses merdinhas – cujo nome vem do latim vírus, que significa “veneno” ou “toxina” – não são nada mais que uma cápsula proteica envolvendo material genético, tão básico que a comunidade científica ainda não fechou o debate se são considerados seres vivos ou não, uma vez que são parasitas intracelulares que não possuem nem metabolismo próprio… Ainda assim, possuem a maior diversidade biológica do planeta! São inertes fora do ambiente intracelular, mas uma vez que infectam uma célula, um único vírus consegue se multiplicar milhares de vezes, tomando conta do hospedeiro de forma rápida e acelerada, como soldadinhos muito bem treinados. 

Comecei a ver o velhinho como uma espécie quase zen de Sr. Miyagi. 

− E nossa sociedade, talvez mais doente antes do que agora, não percebe ainda que toda sua propalada grandeza não conseguiu resistir a este pequeno invasor escorregadio, um lembrete, quem sabe de Deus ou então da Natureza, de que somos somente humanos, demasiado humanos. Tão humanos que erramos sem parar. 

Se ele fosse verde, podia ser o Mestre Yoda. Mas partia para o lado negro:

− Fico olhando essas velhinhas no armazém, ok, talvez umas não tenham quem venha por elas, mas dá para pedir por telefone, para um amigo, parente. Daqui vejo coisas de arrepiar, como o salão de beleza do outro lado da rua, vive cheio. Se for levantar tudo quanto é problema do país e falar "Ah, mas não dá para fazer por causa disso ou daquilo"… É este tipo de pensamento que tá levando esse tanto de pessoas para a rua. Cada um vendo somente o próprio umbigo… 

Argumentei que havia muita gente precisando trabalhar e talvez estivesse agindo por desespero ou falta de oportunidade. Ele deu um ippon, quase controlando a raiva:

− O tipo de pessoa que está indo para a rua é o cara que para em vaga de deficiente, que passa no sinal vermelho, que fura fila, que vai sempre querer que seu pirão seja o primeiro… O que falta não é oportunidade, falta é civilidade, amor ao próximo. Agora, acelera que sua vez chegou e você está empacando a fila! 

Fiz minhas compras de forma rápida, uma vez que não havia muitas coisas na lista, nem tantas cédulas para esbanjar, passei célere no caixa e ao sair do mercadinho só vi a sacada vazia. No caminho de casa me peguei em novo debate comigo mesmo, uma parte concordando cem por cento com os argumentos dele, a outra ainda interpondo recursos, pensando em variáveis. 

E, apesar de ainda ter meus receios pelo o que se vislumbra no horizonte, ainda acredito que se fizermos as coisas mais em conjunto, buscando um equilíbrio entre as várias partes das quais nossa sociedade é formada, poderemos vencer este desafio sem ter sequelas ainda maiores. Com este argumento, até minha outra voz concordou. 

Fiquem seguros.

Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital

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