Diário do Isolamento XIV – O Mito da Caverna
Mas a verdade é que o isolamento funciona – não como alternativa única, claro, mas funciona
Este mundo ou a percepção que dele temos, ao menos na parte ocidental do planeta, deve muito ao pensamento de um sujeito chamado Arístocles, um dos mais estimados discípulos de Sócrates. Se não está se lembrando do prezado Ari, é que ele ficou conhecido na História pelo apelido que ganhou por ter os ombros largos: Platão.
E, se pensa que é o único famoso que ficou registrado para a posteridade por uma alcunha, saiba que Pancho Villa era na verdade José Doroteo Arango Arámbula, enquanto que Calígula – que significa “Botinhas” – foi o cognome do Caio Júlio César Augusto Germânico. Além desses há vários outros, como o Drácula, que realmente existiu (e com este mesmo apelido) na persona de Vlad Tepes, príncipe da Valáquia.
Mas por que falava de Platão mesmo? Ah, sim, porque o ministro Mandetta citou a Alegoria da Caverna em seu último pronunciamento. Aliás, esta crônica se chamaria “O Ministro de Schrödinger” na qual faria uma ilação sobre o cai-não-cai dele, mas o Marcelo Franco – a quem só conheço virtualmente, mas admiro a escrita – pegou essa antes no Mundo das Ideias (outro conceito platônico) e daí só me sobrou falar da referida alegoria… Quem mandou não escrever primeiro.
Então, na Alegoria da Caverna – descrita no livro A República – Platão propôs a Glauco, seu interlocutor, que se pensasse em alguns prisioneiros que estivessem, desde a mais tenra infância, acorrentados, seus corpos e pescoços, de modo que não poderiam mudar o foco de sua visão, não podendo ver a si mesmos ou a seus companheiros de prisão; a única coisa que conseguem visualizar, nesta perspectiva, é a parede que está à frente deles, o fundo da caverna. Há uma fogueira na entrada da gruta, de forma que esta joga um tanto de luminosidade para dentro, juntamente com sombras projetadas. Tais sombras, são de pessoas que estão do lado de fora e passam por ali transportando diversos tipos de carga, como estátuas de homens e animais, caixotes de madeira, pedra e afins. Alguns destes transportadores conversam amenidades entre si, outros passam calados. Para os prisioneiros, as sombras que “dançam” na parede são o que podem chamar de realidade, bem como atribuem os sons que ouvem a elas; “todos nós devemos ser assim”, é que o pensam.
O exercício continua com a sugestão da fuga de um dos cativos. Após o choque inicial do contato com o mundo exterior – com todos os passos para aceitar aquela “nova” realidade, ele pode escolher entre duas coisas: voltar para a caverna na tentativa de salvar seus companheiros ou aproveitar sua liberdade a partir dali. É bem provável que, ao escolher a segunda opção, o fizesse por saber que os outros o considerariam maluco por falar daquele “mundo exterior” e lutassem inclusive para continuar na caverna, na realidade que conheciam e aprenderam a viver.
O tema lhe pareceu conhecido, principalmente no final? É que ele foi um dos conceitos utilizados pelos criadores da película “Matrix”, aquela em que o Keanu Reeves desvia de balas e que deveria ter se encerrado no primeiro filme…
Onde esta alegoria poderia entrar na atual conjuntura? Gostaria de dizer que é naquela cena em que temos que escolher entre uma pílula azul – com a qual poderíamos todos voltar a dormir e o coronavírus seria só um sonho ruim dentro de uma pastelaria – e outra vermelha, com sua dose cavalar de verdade.
Mas a verdade é que o isolamento funciona – não como alternativa única, claro, mas funciona. Basta ver que foi aplicado em todos os países que foram atingidos pelo vírus, por bem ou por mal, é só ver o mapa mundial da pandemia para confirmar que quem se recusou a crer no início, foi forçado a parar pelo desfile de carros funerários, pela lotação dos necrotérios.
Mandetta a defendia, seguindo as advertências da Organização Mundial de Saúde, até que essa posição acabou em rota de colisão com o Planalto, dando início assim ao lento processo de fritura que já consumiu as cadeiras de outros ministros. Mas o momento não poderia ser pior para essa troca.
Daí veio a proposta salomônica – similar à do rei de Israel somente na parte de cortar a criança ao meio – para manter o Ministro da Saúde no cargo: aliviar o isolamento nos lugares onde os leitos de hospital não atingiram a metade da ocupação. Uma aposta arriscada, pois se fizermos uma pesquisa rápida dos números da Covid-19 no Brasil de um mês para cá, será possível ver que estados que aparentemente não apresentavam maior perigo, hoje estão na ponteira da lista dos mais infectados. Mesmo aqui em Goiás, que lidera no quesito de isolamento social (com 66 % da população respeitando a restrição e as autoridades locais empenhadas na luta para conter a propagação) tivemos um acréscimo de casos – menor que a média nacional – embora uma parcela deste aumento possa ser creditada ao fato sui generis de sermos um estado com outro estado interno, o Distrito Federal, que hoje se encontra com uma quantidade quatro vezes maior de infectados.
E para quem (ainda) acha que tudo não passa de exagero, recomendo um artigo que acabo de ver na grande rede: “I Knew Coronavirus Denier Landon Spradlin. His Death Wasn’t a Punchline” (https://foreignpolicy.com/2020/04/02/landon-spradlin-coronavirus-pandemic-death-punchline/) – cuja tradução seria mais ou menos assim: “Conheci o negacionista do Coronavírus Landon Spradlin. Sua morte não é uma piada”.
E cito aqui as palavras da autora, Emily Brumfield-Hessen: “Em 25 de março, um velho amigo da minha família morreu de pneumonia e coronavírus. No dia seguinte, sua história se tornou viral. O músico de blues local e pequeno pregador de rua tornaram-se um símbolo e uma piada, apresentado como um evangélico Trumpista que nega uma pandemia e consegue o que merecia. Mas Landon Spradlin não foi morto por suas crenças religiosas equivocadas, e ele merece mais do que ser lembrado como uma piada. Ele morreu porque veio de uma América rural casualmente conservadora que se tornou preocupantemente afastada da realidade devido à pandemia, e milhares de outras pessoas poderiam seguir seu caminho.”
O artigo continua citando que o pastor não era o típico televangelista milionário, mas sim, um músico viajante que estava sempre pronto para ajudar os necessitados, em especial bêbados e drogados, aos quais, apesar de condenar-lhes o vício, prestava grande auxílio na recuperação. O típico americano que acreditou nas palavras do presidente que os casos de Coronavírus estavam sob controle e diminuindo.
A autora finaliza dizendo estar brava e de coração partido pela morte dele, além da preocupação com os milhões de outros que continuam a rir do vírus.
Tenho eu também a mesma preocupação.
Fiquem seguros.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital