Diário do Isolamento XIII – Aqueles que trajam o branco
“Escolhi servir ao próximo porque sei que todos nós um dia precisamos de ajuda”
Em meio à escalada da pandemia no país, ainda pode-se ouvir quem reclame, pedindo para que se suspendam as medidas restritivas à circulação das pessoas ou que as transmute no “isolamento vertical”, para que somente aqueles que estão em algum grupo de risco fiquem em casa. O problema é que não conhecemos todas as particularidades dessa enfermidade cheia de subterfúgios; há casos documentados de vítimas que não apresentavam nenhuma morbidade anterior, nem de serem considerados suscetíveis, como um advogado de São Paulo de 26 anos, com hábitos saudáveis – praticava academia e fazia corridas, incluindo meia maratona. Se há uma certeza quanto à Covid-19, é essa: somos todos do grupo de risco.
Independente do grau de modernidade que a humanidade tenha atingido, bastou que um vírus novo se apresentasse para nos vermos quase tão indefesos aos seus efeitos quanto nossos antepassados. Afinal, desde a gripe espanhola que o mundo não assistia uma doença ceifar tantas vidas em tantos lugares diferentes, ao mesmo tempo.
Mas é de lá – do passado – que também podemos tirar lições que ainda hoje utilizamos na luta contra as enfermidades e exemplos da abnegação do ser humano em tratar seu semelhante.
Florence Nightingale nasceu em 1820, em Florença, na Itália, durante uma viagem que sua família – abastada e esclarecida – fazia pela Europa. Numa época em que o que se esperava que a mulher fosse somente mãe e dona de casa, Florence aprendeu (com o pai, que lhe incentivava) alemão, francês, grego, latim, matemática e estatística, assim como conhecimentos de História e Política da Inglaterra.
Após recusar dois pedidos de casamento, decidiu dedicar sua vida à caridade e aos enfermos. Como não havia naqueles tempos escolas de enfermagem, especializou-se em um hospital pioneiro, fundado e dirigido por uma ordem de freiras alemãs, na cidade de Kaiserwerth. Quando explodiu a Guerra da Criméia, ofereceu-se como voluntária para cuidar dos soldados feridos, em 1854, junto com um grupo de 38 enfermeiras treinadas por ela. O afinco com que este grupo de trabalhadoras da saúde atuou nos hospitais de campanha ajudou a salvar da morte certa centenas de soldados – chamando a atenção da alta hierarquia do exército para aquele dado novo. Os ensinamentos de Nightingale foram tão bem aprendidos que décadas depois, na Primeira Guerra Mundial, o Exército Britânico, por ter um corpo médico assistido por enfermeiras treinadas, era o que detinha a melhor média de recuperação de seus combatentes.
Percursora de hábitos modernos, foi dela a ideia de separar os casos mais graves, para que ficassem mais em contato com o atendimento imediato, em um vislumbre do que viriam ser as Unidades de Tratamento Intensivo. Como visitava os doentes de noite, vagando entre as macas para verificar o estado em que se encontravam os internos, ganhou destes o apelido de “Dama da Lâmpada”.
166 anos depois, outra guerra está sendo travada, não entre nações, mas sim um mundo inteiro contra um vírus que vem sistematicamente infectando pessoas, cidades e países, passando pelos continentes sem encontrar amarras que o prendam. E no combate a este mal que hora nos ataca e apavora, ainda temos aqueles que travam uma batalha diuturna para salvar aqueles que foram infectados, para fazer com que o contágio não se traduza em fatalidade. Mas ainda há baixas, mesmo entre este grupo que se une para enfrentar a pandemia.
Adelita Ribeiro da Silva era uma das que estavam na linha de frente. Técnica em enfermagem e de laboratório, trabalhava na rede municipal de saúde, em Goiânia, além de uma prestadora de serviços para o Hospital do Coração. No dia 30 de março, foi internada em uma UTI, três dias depois de seu último turno de trabalho. No dia 03, teve confirmado o resultado positivo para a Covid-19. Faleceu no dia seguinte.
Aos 38 anos de idade, não apresentava comorbidades, não estava em grupo de risco e até fez campanha para que os outros ficassem em casa, porque ela e seus colegas de trabalho estariam na vanguarda dessa luta, velando por nós. E o fez até o fim.
É triste ver uma vida plena assim ser ceifada de maneira covarde por esta doença insidiosa, mas é ainda mais triste perceber que ainda há clamores para irmos para ruas, voltar à normalidade, mas como voltar à normalidade se ela não se apresenta mais? Não veem que o mundo todo parou, que países inteiros estão trancafiados?
Tentam justificar colocando tudo na conta “da economia”, é a mesma lógica que fez Milão afundar e a Itália contar corpos ao invés de horas paradas. Essas vozes dissonantes parecem não entender que até atividades multimilionárias como Fórmula 1, NBA e Champions League estão em recesso, pois o perigo é real e imediato.
Felizmente, alheios às vozes dissonantes, agem os que trajam o branco.
E é em memória de Adelita e homenagem aos profissionais de saúde, que retorno às palavras de Florence Nightingale, sobre a sua escolha por esta profissão tão bela quanto necessária:
Escolhi os plantões, porque sei que o escuro da noite amedronta os enfermos.
Escolhi estar presente na dor porque já estive muito perto do sofrimento.
Escolhi servir ao próximo porque sei que todos nós um dia precisamos de ajuda.
Escolhi o branco porque quero transmitir paz.
Escolhi estudar métodos de trabalho porque os livros são fonte de saber.
Escolhi ser Enfermeira porque amo e respeito a vida!
Fiquem seguros.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital