Diário do Isolamento XII – “A Hora da Verdade”
Quanta coisa já foi tida com verdade absoluta por um tempo para depois descobrirmos que era um simulacro do que realmente acontecia.
Uma parábola antiga tem circulado na rede, por servir bem de exemplo para os tempos atuais. Já me foi enviada como texto e também como vídeo (com o competente ator Silvio Matos) e é basicamente assim:
A Verdade e a Mentira encontraram-se um dia. E a Mentira disse à Verdade: “Hoje está um dia lindo, maravilhoso, não está?”. A Verdade deu um suspiro, olhou pro céu, e concordou, pois o dia estava realmente maravilhoso. E elas começaram a passear, caminharam juntas por muito tempo até que chegaram ao lado de um belo poço. A Mentira então, experimentou a água e falou para a Verdade: “A água está ótima, que tal tomarmos um banho?”
A Verdade ficou um pouco desconfiada, mas resolveu testar a água e descobriu que a água estava muito convidativa. Então elas se despiram e começaram a tomar banho. De repente, sorrateiramente, a Mentira saiu da água, vestiu as roupas da Verdade e fugiu.
A Verdade quando percebeu saiu do poço furiosa e correu tentando encontrar a Mentira e pegar as suas roupas de volta. E assim saiu, correndo nua pelas ruas, e a Verdade ia abrindo caminho entre as pessoas que desviavam o olhar com desprezo, com raiva, com vergonha… E a pobre Verdade, após muito correr, muito procurar em vão por suas roupas, voltou ao poço nua e desapareceu para sempre, escondendo em suas águas a sua vergonha.
E desde então, a Mentira vive viajando ao redor do mundo, vestida com as roupas da Verdade. Satisfazendo as necessidades da sociedade porque percebeu que o Mundo não tem nenhum desejo de encontrar a Verdade Nua.
Vejam só, um mundo sem Verdade, onde a Mentira desfila como se verdadeira fosse, parece mais coisa de ficção científica do que de parábolas, Matrix que o diga. Mas será mesmo? Quanta coisa já foi tida como verdade absoluta por um tempo para depois descobrirmos que era um simulacro do que realmente acontecia. Deixemos a antiguidade para lá e foquemos do início do século XX para cá:
- Em 1904, durante a Revolta da Vacina, agitação social que aconteceu durante os esforços para livrar o Rio de Janeiro de ser foco endêmico de várias doenças, como febre amarela, febre tifoide, varíola, peste bubônica e tuberculose, comentários maldosos – creditados a disputas políticas da época – diziam que aqueles que tomassem a vacina obrigatória, desenvolveriam características bovinas (uma vez que a vacina contra a varíola era produzida a partir da “cowpox”, a varíola bovina);
- Já em 1912, a propaganda de lançamento do maior transatlântico que o mundo já vira, dava conta de que nem Deus o afundaria; o Titanic, como sabemos, não chegou a terminar nem a primeira viagem;
- Mas é a partir dos anos 30, mais precisamente após 1933 que, com a chegada ao poder de um improvável grupo de radicais, liderados por um sujeito excêntrico ao ponto da comicidade, que a mentira foi alçada ao estado de arte. E seu Michelangelo atenderia pelo prosaico nome de Joseph Goebbels, a mente por trás de conceitos como “O Reich de mil anos” ou pérolas como “Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”. A Goebbels credita-se a criação dos imensos comícios de Hitler, bem como toda orientação para as transmissões radiofônicas do Fuhrer, além de outras brilhantes peças de propaganda nazista, como o filme de Leni Riefenstahl (que inclusive ganhou prêmio no Festival de Veneza de 1935) e ainda continua a ser um dos melhores exemplos e modelo de filmagens do esporte;
- Nos anos 40, a marca de cigarros Camel, fez várias peças de propaganda dando um ar saudável aos seus produtos, com o slogan “Os médicos fumam mais Camels do que qualquer outro cigarro” (Isso me lembra também um comercial dos anos 80, que associava cigarro com juventude e esportes, afinal “Hollywood é o sucesso!”);
- Outra lorota que tomou ares ainda maiores, que pode ser considerada hoje uma lenda mesmo, é a de que o corpo, mais precisamente a cabeça, de Walt Disney, criador de Mickey Mouse e Cia, estaria preservada em nitrogênio líquido desde 1966, esperando que no futuro a medicina tivesse resposta para sua reanimação. A verdade é que o corpo dele – todo o corpo, registre-se – foi cremado três dias depois da morte.
Poderíamos nos estender por horas sobre as mais diversas mentiras que se passam por verdades, ainda mais agora que estas foram turbinadas com agilidade das redes sociais. Basta um pequeno boato e voilá: uma nova verdade bate à sua porta. Ou apita em seu smartphone, para ser mais exato.
Por isso mesmo que devemos examinar com mais cuidado toda e qualquer informação que nos é repassada. Para fazer um mea culpa, eu mesmo, ao finalizar uma das crônicas recentes – Diário do Isolamento X – “A Arte no meio do caos” – citei ao final um poema que inicialmente acreditava ter sido escrito por Kathleen O´Meara (1839-1888), em 1869. Tal poema tem também circulado pelas redes, pois sua mensagem casa muito com o momento desta pandemia. Imagine, um poema escrito em 1869 que nos dá hoje um pouco de esperança contra o Coronavírus… A verdade, é que o poema foi escrito em março deste mesmo ano, pela poeta Kitty O´Meara e viralizou depois que Deepak Chopra compartilhou. Nos meandros das redes é que acabou por ser transmutado na obra do passado, algo como o que falamos naquela brincadeira “telefone sem fio”.
Ah, e sobre a parábola que inicia o texto, ela também tem outro final, que particularmente prefiro:
A Verdade, quando volto ao poço, recusou-se a vestir-se com as roupas da Mentira, e por não ter porque se envergonhar, saiu nua, a caminhar pelas ruas e vilas. E é por isso, que desde então, aos olhos de muita gente, é muito mais fácil aceitar a Mentira com as roupas da Verdade, do que a Verdade nua e crua.
Qual o final que você prefere?
Fiquem seguros
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital