Diário do Isolamento X – “A Arte no meio do caos”

…é depois das maiores tempestades que o sol volta mais brilhante 
e os céus, mais azuis.

“Na manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada”. Após breve introdução sobre o assunto a ser abordado, é deste modo que começa a ação do livro “A Peste” de Albert Camus, escritor franco-argelino, vencedor do Nobel de Literatura. Nesta obra, publicada em 1947, em um mundo recém-saído dos horrores da Segunda Guerra Mundial, Camus fez uma alegoria ao nazismo, às provações que os franceses passaram durante a guerra e ao mesmo tempo, devassou o espírito da própria humanidade. Com o crescimento da atual epidemia, a procura pelo livro aumentou consideravelmente, trazendo-o de novo para a lista dos mais vendidos.

Esta não foi a primeira – e com toda a certeza não será a última – vez em que a arte foi e é utilizada como escape ou resposta para tempos difíceis e tragédias de diferentes escopos. Uma forma de expiar a culpa humana, servir de lenimento para a alma, clamar por um pouco de esperança ou mesmo não deixar com que estes horrores caiam no esquecimento.

Vem da Grécia antiga, berço da cultura ocidental, quiçá os primeiros exemplos disso: tanto a “Ilíada” quanto a “Odisseia”, poemas clássicos cuja autoria é atribuída a Homero, tratam de fatos acontecidos antes, durante e depois da Guerra de Tróia.

Vários séculos depois, Goya, o excêntrico e sofrido pintor espanhol, exasperado pelas violentas ações da França napoleônica, fez toda uma série de telas intitulada “Os desastres da Guerra”; entre 1810 e 1814, onde se encontram duas de suas obras primas, ambas retratando fuzilamentos em 02 e 03 de maio de 1808.

Durante a Guerra Civil Espanhola, o também espanhol Pablo Picasso fez a sua “declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência”, através da icônica tela Guernica, onde denunciava o covarde bombardeio da cidade do mesmo nome e criando um libelo contra todos os conflitos.

Entretanto, nem sempre os artistas que produzem essas obras são contemporâneos aos acontecimentos que retratam: Art Spigelman baseou-se nas memórias da mãe e em entrevistas com o pai – sobreviventes do holocausto – para escrever e desenhar a graphic novel Maus, primeira publicação do gênero a vencer um prêmio Pulitzer, enquanto que o artista plástico irlandês Rowan Gillespie esculpiu, em 1997, o Memorial da Fome, um conjunto de estátuas que representam a Grande Fome que grassou na Irlanda entre 1845 a 1849 e matou mais de um milhão de pessoas.

Expressões artísticas servem não somente para reflitamos posteriormente sobre estes acontecimentos, como também para que as novas gerações tenham conhecimento do que pessoas do período vivenciaram; voltando ao exemplo de Maus, que foi publicada de forma seriada entre 1980 a 1991, a revista serviu para que a juventude daquelas décadas conhecesse melhor o que foi o holocausto.

Mas nem todas as obras artísticas são feitas em forma de representação, alegoria, lembrança ou denúncia. Há também aquelas que nos lembram que é depois das maiores tempestades que o sol volta mais brilhante e os céus, mais azuis.

Por isso finalizo por hoje com um poema que recebi nestes dias em que não sabemos como tudo acabará, mas nos quais temos que manter os esforços para que tudo dê certo.  Foi escrito por Kitty O´Meara, por conta desta pandemia.

FICAR EM CASA

E as pessoas ficaram em casa
E leram livros e ouviram 
E descansaram e se exercitaram
E fizeram arte e brincaram
E aprenderam novas maneiras de ser
E pararam
E ouviram fundo 
Alguém meditou
Alguém orou
Alguém dançou 
Alguém conheceu sua sombra 
E as pessoas começaram a pensar de forma diferente
E pessoas se curaram
E na ausência de pessoas que viviam de maneiras ignorantes,
Perigosas, sem sentido e sem coração,
Até a Terra começou a se curar
E quando o perigo terminou 
E as pessoas se encontraram 
Lamentaram pelas pessoas mortas 
E fizeram novas escolhas 
E sonharam com novas visões 
E criaram novos modos de vida 
E curaram a Terra completamente.

Fiquem seguros.

Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital

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