Diário do Isolamento VI – “Alice no país das redes sociais”
…tenho saudade do tempo em que o maior risco que a gente corria ao abrir um áudio era cair no “gemidão do WhatsApp”
Os últimos dias têm sido um cabo de guerra de informações. Desde que se se aventou a possibilidade de um “isolamento vertical” ou mesmo o fim das restrições de circulação e trabalho, o país redesenhou-se novamente entre os a favor e os contra, cada um querendo fazendo valer o seu ponto de vista. E, como diria Hans Georg Hadamer: “ninguém é mais intolerante do que aquele que quer comprovar que aquilo que ele diz deve ser verdade”.
Com este duelo desenhado, foi escolhido como campo de batalha (por conta, vejam só, do isolamento) as redes sociais e os aplicativos de conversa, em especial aquele do balãozinho verde, WhatsApp para os legalistas, “Zap” aos íntimos. Quanto às armas, vão de dados de órgãos de saúde, passando por avaliações de analistas financeiros, matérias de jornais locais e estrangeiros até chegar aos famigerados áudios “de alguém que trabalha no hospital tal e disse…”
É aí que mora o perigo. E não precisa ir longe: pegue seu celular, acesse o primeiro grupo de conversa que participe e é bem provável que uma das cinco primeiras postagens seja relacionada com a pandemia. Já adiantando, vamos descartar coisas como “Soroterapia para evitar Coronavírus”, “gargarejar água morna com vinagre mata o vírus”, “áudio do Ministro da Saúde para compartilhar já!” e outras pérolas. Aliás, desconfie sempre quando pedirem para replicarem um áudio ou notícia. É que notícias verdadeiras em geral não precisam de incentivo para serem replicadas. As que precisam, na maioria dos casos, são mentiras que – assim como o vírus – necessitam serem transmitidas para continuar a sobreviver, a infectar mais pessoas.
Segundo Paul Ekman, psicólogo americano pioneiro no estudo das emoções e expressões faciais – estudo este usado como ferramenta para detectar inverdades – uma mentira é contada no momento em que “uma pessoa tem a intenção de enganar a outra, o fazendo deliberadamente, sem notificação prévia de seu propósito e sem ter sido explicitamente solicitada a fazê-lo pelo alvo”.
No afã de fazer prevalecer seu ponto de vista, muitas pessoas acabam replicando informações inverídicas, muitas vezes, por não checarem a origem delas antes. Em um grupo de amigos – agora, no fim de março – um participante que defende a suspensão do isolamento postou uma manchete com os seguintes dizeres: “Itália muda de estratégia contra o Coronavírus para combater o alarmismo e proteger a economia”. A notícia era original e legítima, ocorre que era do dia 28 de fevereiro, quando a Itália registrava ainda 17 mortes pela Covid-19. Antes que o caos por lá se instalasse.
É por causa desta falta de checagem e da instantaneidade das redes sociais que os boatos e mentiras se alastram tanto. A BBC de Londres fez o rastreio de um dos mais famosos, o do “Tio com mestrado” ("Uncle with master's degree", em inglês): um boato sobre informações totalmente desencontradas a respeito do Coronavírus, como o já famoso “beber mais água quente”. Este rumor, que começou no Reino Unido, atravessou fronteiras, passando de Gana – via Instagram de um apresentador de TV – até grupos de religiosos na Índia.
É tanta coisa rolando nas redes, tanto boato, rumor e até mentiras deslavadas – como os portadores de soros milagrosos ou curas instantâneas – que tenho saudade do tempo em que o maior risco que a gente corria ao abrir um áudio era cair no “gemidão do Whatsapp”: aquela voz feminina simulando os sons da alcova, em alto e bom som. Se estivesse em uma reunião da empresa ou na mesa de bar com os amigos, era garantia de risada na certa.
Sinto falta das risadas, assim como dos amigos e das mesas de bar (especialmente estas), sinto falta inclusive de procurar um lugar no estacionamento do meu serviço, de cumprimentar apertando as mãos, trocando abraços e beijos. Mas este não é o momento para isso, é o momento de nos recolhermos para que essa epidemia passe e possamos trabalhar juntos para reerguer a economia.
De verdade, sem boatos, rumores ou mentiras. Pois como diz um provérbio árabe: “a mentira dá o almoço, mas não dá o jantar.”
Fiquem seguros.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital