Diário do Isolamento IX – “Lembranças tardias de minha última assepsia”
"Porque é isso que os amigos nos trazem: um pouco de calma, um tanto de fé, aquela ponta solta de esperança …"
Posso começar tentando explicar o fim? Mesmo sendo algo que todo ser vivo saiba, cógnito ou intuitivamente, o fim não é algo com o que nos preocupamos com a devida atenção. Evitamos pensar que somos suscetíveis à falha, ao passar do tempo, ao fim de nossos dias naturais. Acreditamos que somos os mestres deste mundo, o topo da pirâmide, da cadeia alimentar, o único animal racional do planeta e que por termos conseguido ir até nosso satélite natural, que conquistamos o Cosmos, chegamos às estrelas, que estamos no ápice da História humana. Vã filosofia…
Penso nisso enquanto calço o tênis do lado de fora do apartamento – efeito destes dias em que temos medo de tudo – e chamo o elevador com o cotovelo (será que passei álcool em gel antes de sair?). O sol recém nasceu e aproveito, junto com minha namorada, para dar uma caminhada em frente ao prédio, só para desenferrujar o corpo e arejar um pouco a mente, algo inclusive sugerido pela OMS, para mantermos um mínimo de atividade física, algo que ajuda inclusive nosso estado mental.
Percebo melhor isso enquanto conversamos na caminhada (onde mantemos a distância recomendada de outros caminhantes, almeno due metri: no mínimo dois metros); antes falávamos de filmes, séries, reportagens e outros aspectos pitorescos da vida, nestes dias estes assuntos foram substituídos pelos desdobramentos da pandemia do novo Coronavírus. Um repassar constante dos países que estão a viver o caos por conta do número de infectados; a quantidade de vítimas em cada um deles; a realidade nacional, estado por estado; erros e acertos na condução do combate à crise; os medos de outra crise que se apresenta no horizonte, essa agora financeira; o receio de ser mais um… Chega. Decido que é hora de mudar de foco
− Você não acha que os zumbis gore coreanos de Kingdom são muito mais legais do que aquelas moscas mortas de Walking Dead?
Demoro um pouco para explicar a mudança de tópico pois tanto meu trabalho – na Comunicação – como o dela, na área da Saúde, estão diretamente afetados por este assunto. O do vírus, não os mortos-vivos. Mas é que essa superexposição de fatos, este excesso de notícias a respeito de um inimigo para o qual ainda não temos armas efetivas, acaba por nos deixar em um estado de nervosismo e ansiedade que pode desgastar muito mais a parte mental do que a física.
− Sem contar que falar de zumbis é bem mais chique – finalizo meu argumento como quem dá um xeque mate, ou o meia que bate a falta indefensável na gaveta, imaginando que a piadinha tenha rendido efeito. Ela ri, como quem concorda e a partir dali falamos desse importante assunto: Gatos.
− Porque são ainda mais chiques que zumbis.
Vencido, adentro o fabuloso reino dos felinos e descubro com alguma surpresa – afinal, na condição de alérgico, nunca fui muito de abeirar essas criaturinhas – que os bichanos prezam bastante pela higiene e que, ao contrário do que rezam as lendas, esses montinhos de pelos são bastante companheiros.
O importante é que a partir dali nos desanuviamos um pouco e continuamos a conversar de forma amena enquanto andamos e quando começamos o trajeto da volta, damos de frente com uma grande amiga dela; as duas param por um momento, quase se rendendo ao reflexo automático do cumprimento com beijo, desistem, parecem desconfortáveis naquela situação sem jeito. Do meu posto de observador, me limito a um aceno de cabeça, nada mais. Aliás, dou um passo atrás.
Após os respectivos “ois” e “como vais” as duas começam a entabular conversa mais firme, acabamos descobrindo que cada um de nós representa uma parcela da sociedade: enquanto estamos respeitando o isolamento – eu em trabalho remoto e minha namorada com sua rotina suspensa – a amiga informa que por ter um negócio listado como essencial ainda continua em atividade.
As duas discorrem então sobre as dificuldades de cada vertente: ficar em casa nestes dias é aterrador, com tudo o que se tem que pensar e pouco a fazer, ao que a outra responde que manter as portas abertas no meio de centenas de outras fechadas é estranho e assustador. Como um eterno domingo que nunca acaba. Dali, discorrem sobre como se preocupam com os pais idosos dos quais tem de se manterem afastadas por segurança, além do fato de serem dias estranhos, de uma tristeza quase invisível pairando no ar…
Muito embora o assunto tenha voltado para a inevitável realidade da epidemia, percebo que o semblante da amiga, tão tenso de início que entregava de pronto todas as preocupações que carregava consigo, vai de pouco a pouco se abrindo, desanuviando. Aproveitam para colocarem algumas novidades em dia, planejam juntar outras amigas para um bate papo (virtual, evidentemente), tomar um vinho, rirem, viverem um pouco. Porque é isso que os amigos nos trazem: um pouco de calma, um tanto de fé, aquela ponta solta de esperança e às vezes te esbofeteiam com aquelas verdades doloridas que teimamos em não querer ver.
Estão visivelmente emocionadas, mas seguram bravamente as lágrimas, se prometendo que tudo dará certo, que passaremos por mais essa e se despedem com aquele “até logo” que usávamos tão facilmente meses atrás.
Sinto uma vontade imensa de tossir. A título de informação: tenho um pigarro antigo que se manifesta em situações um tanto esdrúxulas, a última delas na fila do supermercado. Um “cof” e já não via ninguém no raio de cinco metros de mim. Uma bela merda… Agora, seguro tanto o físico espasmo na garganta, que meus olhos não suportam a pressão e lagrimejam.
Enternecida, minha namorada credita essa gota sapeca ao emocionante encontro. Mal sabe ela que estou com medo mesmo é de levar minha mão no rosto (afinal, passei ou não o tal álcool em gel antes de sair?).
Fiquem seguros.
* O título e o primeiro parágrafo foram adaptados de um conto meu: “Lembranças tardias de meu último duelo”.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital