De terra queimada pelo sopro do monstro à capital cultural: Goiânia recebe seu batismo

Em 1933, Lévi-Strauss vê na nascente Goiânia uma terra assolada, misto de terreno baldio e campo de guerra. Nove anos depois de sua visita, a cidade transforma-se e recebe as bênçãos da cultura, podendo se exibir para o país todo.

Batismo é um evento muito importante na vida daqueles que estão envolvidos nele. Normalmente é um momento não só religioso, de afirmação da participação da fé, mas também um evento social, de apresentação do novo membro à comunidade religiosa. Essa apresentação é importante justamente para identificar o indivíduo dentro desse novo grupo que ele passa a participar.

Esse tipo de evento social é relativamente comum não só nas comunidades religiosas, mas na sociedade laica também. Até anos atrás, as garotas, ao completarem seus 15 anos, participavam de um grande baile – o baile de debutante – onde era “apresentada” a sociedade na qual vivia, fazendo seu début (que significa começo ou estreia em francês) e passando a ser uma integrante da vida social e, de forma latente, uma “moça casadiora”, como se dizia no Século XIX, podendo ser incluída nos “jogos de sedução e arranjos” que os casamentos se configuravam.

Poderíamos nos questionar se faz sentido que uma cidade seja “batizada”. É difícil pensar nisso, mas esses “eventos” sociais estão lá, nas histórias de cada uma delas: um marco de pedra, um discurso de alguém importante, uma fita cortada, uma descoberta arqueológica, uma construção que ganhou significado com o passar do tempo. Goiânia, porém, escolheu uma denominação única para seu début na sociedade brasileira: o batismo cultural.

Uma festa de onze dias

Esses eventos ficam marcados por um instante, que bem ao gosto de políticos e memorialistas marcam o momento quando “começa a história”. E no caso de Goiânia, essa data pode ser apontada como 5 de julho de 1942, pois foi nesse dia que a “chave da cidade” foi entregue ao prefeito Venerando de Freitas Borges, indicado pelo interventor federal Pedro Ludovico, além de ocorrer uma missa campal na Praça Cívica.

Houve festejos antes e depois dessa data, especificamente entre o dia 1º e 11 de julho daquele ano. E a festa tinha um papel importante: apresentar a cidade para o Brasil como cidade moderna e, o mais significante, culturalmente ativa. Nessa festa houve a apresentação da cidade para autoridades federais, exposição agropecuária, jantares festivos, apresentações… até mesmo um disco com as músicas celebrativas e folclóricas foi lançado.

Um grande marco desse momento, que até hoje temos no horizonte da cidade, é o Teatro Goiânia. Foi inaugurado no dia 5 de julho daquele ano com o nome de Cine-Teatro Goiânia. Outro marco físico é o Campus Goiânia do Instituto Federal Goiano e o seu portal característico. Inaugurado nesse mesmo dia, é um dos exemplos da arquitetura Art déco em voga na época e abrigou parte dos encontros culturais da festa.

Batismo de concreto e letras

Mas qual o sentido do “batismo cultural” para uma cidade que já havia sido inaugurada? A resposta pode ser encontrada mais no termo “cultural” do que em “batismo” (apesar desse último ter muita importância devido à forte religiosidade que podemos perceber na região). Goiânia foi construída num momento muito específico da história brasileira, onde se procurava marcar uma nova imagem geral.

A cidade de Goiás era consolidada e tinha vida cultural ativa, mas, para as populações do litoral, a região do estado goiano era insalubre e desabitada, logo sem cultura também. A elite política goiana que foi alçada ao poder com a revolução de 1930 estava ansiosa em garantir que seu principal empreendimento (a nova capital estadual) fosse visto como um grande avanço em diversas áreas para a sociedade.

Crescia a percepção de que era preciso um evento para “marcar o início da nova história” em Goiás à medida que Goiânia se via sem destaque nos principais centros do país. Assim, mostrar que a nova capital era um centro cultural foi a forma de trazer atenção e publicidade para a jovem cidade. Um dos meios para fazer isso foi a Revista Oeste, encarregada de promover a divulgação cultural e científica de Goiás e de Goiânia, lançada nesse mesmo momento e distribuída para todo o país.

Dois aniversários, um passado e um futuro

Goiânia é daqueles casos curiosos: tem duas datas festivas, 24 de outubro e 5 de julho. A primeira é uma lembrança do “início da obra” de Goiânia, com o lançamento da pedra fundamental em 1933. Também nessa data celebrava-se o terceiro aniversário da revolução de 1930, que tinha alçado tanto Pedro Ludovico Teixeira ao poder como interventor federal em Goiás, quanto Getúlio Vargas como presidente (naquele momento constitucional, mas que tinha assumido o papel de ditador antes dessa data e voltaria a assumi-lo depois).

Já 5 de julho é o momento da “inauguração de fato”, vinculando a cultura como marco desse espaço urbano nascente. A cidade não surgiu por causa da “Marcha para o Oeste”, mas por ela consolidou-se, possibilitando novos espaços, como Brasília, ou feitos como o desenvolvimento de uma “nova fronteira agrícola”. Mas foi a cultura que apresentou Goiânia para o país, atraindo para si as bênçãos de artistas e intelectuais, que renovam os votos para a cidade cotidianamente.

Givaldo Corcinio – historiador – ABC Digital

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