Gabinete Literário Goyano: livros, jornais e conceitos como status e conhecimento

Um Netflix de livros no Século XIX, longe das principais cidades do império. A primeira biblioteca goiana começou com acervo eclético que chegava em lombo de burro depois de meses de marcha e funciona ainda hoje, oferecendo mais do que apenas acesso à um símbolo de status.

Uma construção em Goiás teve importância semelhante no cotidiano das pessoas de seu tempo ao da popularização da Netflix e outros serviços de streaming nos dias atuais. Bens culturais como arte, cinema, teatro e literatura, música, programas de debate e de opinião, revistas, jornais e livros estão a alguns cliques e talvez por algumas moedas a menos no bolso. Mas em 10 de abril de 1864 a cidade de Goiás conheceu um meio de difusão cultural muito singular: o Gabinete Literário Goyano.

Modelo antigo

Apesar dos diversos aplicativos de streaming de vídeos, de disponibilização de livros ou de visualização de jornais inovadores quando nos deparamos com eles, a verdade é que não deixam de ser releituras das locadoras de vídeo, saudosas para alguns e de memória quase angustiante para outros. Elas próprias, com suas características e particularidades, tinham algo de bibliotecas, onde se podia acessar volumes e levar para casa alguns deles mediante uma assinatura, cadastro ou outro tipo de controle.

Associar-se a um “clube” para poder ter acesso aos materiais de difusão do conhecimento, de entretenimento e de arte é um modelo muito mais antigo do que podemos pensar. Bibliotecas já existiam no mundo desde a chamada Idade Antiga. Mas, inserido dentro do mundo eurocentrista desde o Século XV, o Brasil só tem permitida a circulação de livros, assim como a produção de jornais e folhetos impressos, depois da chegada da família real portuguesa, em fuga das invasões napoleônicas, em 1808.

Símbolo de distinção social

Demoraram alguns anos para que a impressão chegasse em Goiás, com a Matutina Meiapontense, primeiro jornal da região, mas o desejo e a percepção do papel promovido pelo livro na construção de uma sociedade diferente já estava presente no cotidiano de alguns núcleos urbanos, como Pirenópolis e Goiás. A própria Matutina Meiapontense noticiou a instalação de uma biblioteca pública em Meia Ponte (Pirenópolis) em 1832, mas o silêncio dos anos seguintes no jornal indica que o empreendimento não foi pra frente.

O livro só vai ter destaque com o fortalecimento do pensamento liberal (que é um tanto diferente do liberalismo que algumas pessoas advogam na atualidade) e ele demandava um acesso mais livre ao que se escrevia e pensava, mesmo que questionasse (ou especialmente por isso) os ditames do governo estabelecido.

O Século XIX é um momento de grande expansão do letramento, não só para o desempenho de funções práticas, mas também para o desenvolvimento de uma erudição, de um “bom gosto” cultural e da apreciação do pensamento mais “elevado” e erudito. Ter livros passou então a ser distinto, e não sinal de apostasia ou de rebeldia em relação ao poder. Porém, ainda assim era caro ter livros, ainda mais em quantidade e variedade.

A solução dos problemas, ou quase

Ter livros era caro, não só pelo custo deles mesmos, mas também pelo “frete”, feito por meio das tropas que as vezes demoravam meses para chegar do Rio de Janeiro ou de São Paulo, trazendo as novidades. O Gabinete Literário Goyano tentou ser uma opção de biblioteca que não dependesse dos aportes (e consequentemente se submetesse a censura) do governo para a aquisição dos livros.

Mesmo assim, o governo provincial (e depois estadual) por vezes era demandado a contribuir com a aquisição de novos volumes para a biblioteca, mesmo que os sócios precisassem pagar uma inscrição e uma mensalidade equivalente, aproximadamente, a R$125,00 e R$25,00 respectivamente.

As dificuldades de comunicação e de locomoção, que durante muito tempo serviram como explicação da manutenção do isolamento e de um certo “atraso” do território goiano, eram suplantadas por contatos e dinheiro. Exemplo disso é o alcance e o impacto da leitura na comunidade, onde se vislumbravam jornais portugueses e lia-se livros escritos em francês.

O gabinete de leitura não foi uma exclusividade goiana. Eles surgiram em diversas partes do império e reuniam pessoas interessadas em ter acesso a livros, jornais e discussões diversas sobre novas ideias e descobertas, além de promover, a seu modo, a cultura e as primeiras letras. Em muitos lugares os gabinetes literários tinham escolas de primeiras letras anexadas a elas. Em Goiás, ele surgiu dentro de uma.

O mais conhecido é o “Real Gabinete de Leitura Português”, no Rio de Janeiro. Ele funciona até hoje, assim como o seu congênere goiano, mesmo diante de um universo de dificuldades, de opções de acesso a livros por meio das telas que permitem tê-los sempre à mão, mas não com a mesma presença que é percebida nos espaços físicos destinados às coleções de livros.

Givaldo Corcinio – historiador – ABC Digital

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