A Lua, as armas e o poder: uma noite que não deve ser esquecida

57 anos atrás, tropas saíram às ruas, políticos articularam mudanças na ordem por meio da caneta e Palácio das Esmeraldas ficou sob ameaça de bombas no anseio de garantir um governo que fortalecesse o olhar conservador e favorável a determinados grupos políticos e econômicos

O quanto uma mudança de fase da lua pode modificar a história de um país? No Brasil, podemos dizer que essa mudança causou efeitos pelo menos durante mais de 25 anos. A noite entre 31 de março e 1º de abril de 1964 trouxe ao público do país um cenário que não era exatamente uma novidade, mas foi um endurecimento de uma visão de mundo e ação político-social.

Engana-se quem pensa que essa noite foi um “instante excepcional” na história política brasileira que levou o movimento das tropas entre Juiz de Fora (MG) e o Rio de Janeiro, consolidando a ruptura entre diversos grupos da sociedade (militares, políticos de direita, empresariado, setores da Igreja, imprensa e outros grupos conservadores) e o presidente João Goulart.

Anos de insatisfação

Podemos dizer que o golpe civil-militar de 1964 começou a ser plantado dez anos antes, quando da crise política protagonizada por membros do empresariado e da classe política conservadora contra o então presidente Getúlio Vargas. O antagonismo entre esses grupos ficou marcado pelos discursos inflamados de Carlos Lacerda, jornalista, comunicador e político que fez oposição sistemática aos governos não ligados à UDN, seu partido.

Esta oposição atravessou o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) e Jânio Quadros (1961), chegando ao período de João Goulart (1961-1964), vice-presidente que foi alçado ao governo depois da renúncia de Jânio. Ela se fazia presente em ações políticas e de difusão ideológica, como os discursos de Lacerda e nos filmes produzidos pelo IBAD e pelo IPES, associações financiadas pelo governo norte-americano, que divulgavam propaganda e apoiavam políticos anticomunistas pelo país.

Empresários também faziam parte desta oposição, devido a contrariedade deles com a política relativa à economia e aos salários empreendida pelos governos desse período. Latifundiários e religiosos conservadores completavam o universo de personalidades que viam no governo de João Goulart um risco iminente de “cubanização” do país.

Uma presidência conturbada

Apesar de Jânio Quadros ser do mesmo partido que Lacerda e se identificar com sua retórica de “combate à corrupção e limpeza do Estado” e a sua passagem meteórica pela presidência (foram apenas sete meses até a renúncia), a insatisfação por não ver um projeto de governo que fosse apoiado pelo seu grupo chegar e manter-se no poder fez com que muitos componentes da oposição passassem a considerar a tomada do poder pela força.

Fomentavam ainda mais insatisfação ações do governo João Goulart que, direcionando intervenções estatais para suas bases de apoio (sindicatos, militares de baixa patente e trabalhadores urbanos e rurais), acabava atingindo interesses de grupos da elite do país. Uma rebelião de sargentos em 1963, o comício da Central do Brasil – onde Goulart assinou decretos desapropriando terras as margens de ferrovias e rodovias e encampava refinarias de petróleo – em 13 de março de 1964 e a revolta dos marinheiros em 25 do mesmo mês no Rio de Janeiro foram os eventos que mais inflamaram a escalada do movimento golpista.

O início de uma longa noite

A insatisfação dos grupos de oposição era visível na mídia, com diversas reportagens e editoriais contra o governo Goulart, em ações de propaganda e em manifestações como a “Marcha da Família com Deus e pela Liberdade”, onde esses setores ocuparam ruas de diversas cidades para marcar posição contra o governo. Esse cenário serviu como apoio para militares e políticos, particularmente os governadores de São Paulo, Minas Gerais e do então estado da Guanabara (a cidade do Rio de Janeiro) colocarem em marcha o movimento de destituição do presidente Goulart.

O movimento de tropas se daria a partir do dia 8 de abril, visto que “nada iniciado na lua minguante dá certo”, como dizia um dos generais da Infantaria, mas por decisão intempestiva de um dos comandantes das tropas, os movimentos para tomar a cidade do Rio de Janeiro começaram na madrugada do dia primeiro de abril.

Goulart viu-se sob o risco de iniciar uma guerra civil no país, posto que ainda tinha apoio entre alguns segmentos militares (Aeronáutica e guarnições do III Exército, no sul do país), de grupos populares e políticos. Um movimento de resistência era possível, mas poderia cindir o país e Goulart, ciente disso, viajou para estado do Rio Grande do Sul, buscando definir a estratégia a ser tomada.

Entretanto, foi determinante para a consolidação do golpe (e o esvaziamento de qualquer resistência) a ação do presidente do Senado, Auro Soares, que na noite do dia 2 de abril declarou a presidência vaga – mesmo com Goulart em território nacional – e possibilitou a eleição indireta do general Castelo Branco (1964-1967) como presidente do país, o primeiro do ciclo militar encerrado 21 anos depois.

A política de Goiás na mira da repressão

Apesar de a Capital Federal estar situada em seu território, Goiás não foi cenário preponderante nas movimentações político-militares que resultaram na queda do governo de João Goulart e na ascensão de novos grupos ao poder. Mesmo assim, Goiás esteve envolvido de algum modo a esses eventos.

O governador da época, Mauro Borges Teixeira, era militar (promovido a coronel quando foi para reserva), tinha se alinhado a Leonel Brizola em 1961, quando da primeira tentativa de golpe contra João Goulart. Ele utilizou os meios de comunicação do estado – notadamente a Rádio Brasil Central – para apoiar a manutenção da legalidade e garantir a posse de Goulart após a renúncia de Jânio Quadros.

Mas o apoio durou pouco e em 1964 o governador não se movimentou objetivamente contra o golpe. Entretanto, com a consolidação dos militares no poder, tiveram início diversos atos de perseguição a opositores do novo regime (que ficou representada, entre outras formas, pelos Atos Institucionais que reuniam listas de indivíduos que tinham seus direitos políticos cassados pelos mais diversos motivos).

Mauro Borges, acusado de comunismo e corrupção, foi destituído do poder em novembro de 1964 e se propõe a resistir, não entregando o cargo ao interventor federal. Mas sob a ameaça de bombardeiro de Goiânia pela Força Aérea e os voos rasantes dos caças da base de Anápolis, entrega o cargo de governador ao interventor, suspendendo na última hora a ação contra o Palácio das Esmeraldas.

Givaldo Corcinio – historiador – ABC Digital

Governo na palma da mão

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