Uma nova ordem para alcançar o progresso: a Constituição de 1891

A mudança de império para república exigiu uma nova lei que tentou reformar a política do país. Se o olhar elitista manteve muitas questões que ainda hoje não estão resolvidas, ele também lançou as bases para a transformação que ocorreu 69 anos depois: a criação de Brasília

Num golpe inesperado, há quase 132 anos, o Brasil teve uma mudança política significativa que se consolidou dois anos depois. O grande império tropical, que causava desconfianças entre seus vizinhos latino-americanos, havia se transformado em uma república. A mudança havia sido feita por grupos muito diferentes e não estava muito claro para aqueles que estavam à frente do movimento, na sua maioria militares, o que seria essa república que tanto se falava.

Mais do que uma questão de democracia, para muitos, a ideia de ordem deveria estar à frente de qualquer assunto. O primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, até então provisório, viu-se diante de um governo republicano que não tinha uma lei básica que desse um ordenamento novo para consolidar o regime recém-instalado, visto que a constituição de 1824 foi revogada assim que os republicanos chegaram ao poder. Governando por decreto, no mais legitimo estilo ditatorial, Deodoro da Fonseca convocou eleições para formar uma Assembleia Constituinte.

Nós, os representantes do povo… mas nem tanto

Apesar de ser votada, esta assembleia estava longe de ser uma representação da sociedade brasileira, além de ter pouco tempo e espaço para discutir mudanças na nova Carta Magna. O sistema eleitoral preparado para o novo momento era mais restritivo do que existia no período imperial.

Apesar de defender o “voto universal”, ele estava restrito aos homens maiores de 21 anos que soubessem ler, que não tivessem voto de obediência (como religiosos e militares) ou cargo público, além de impedir o alistamento de mendigos. Tais critérios faziam com que o eleitorado fosse de menos de 2% da população.

Além disso, a proposta de constituição tinha sido preparada antecipadamente por Joaquim Saldanha Marinho, Américo Brasiliense de Almeida Melo, Antônio Luís dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José Antônio Pedreira de Magalhães Castro e revisada por Rui Barbosa, inspirada fortemente na constituição norte-americana, apesar de o modelo de república dos EUA não ser uma unanimidade entre os partidários do novo governo. O projeto foi encaminhado à Assembleia Constituinte, a qual, após a discussão e votação dos artigos, bem como a aprovação das emendas, promulgou o texto no dia 24 de fevereiro de 1891.

Uma batalha de ideias

Se a Constituição pode ser vista como uma base para o ordenamento do Estado e os conceitos nela presentes são fundamentais para que a sociedade funcione juridicamente de um modo satisfatório, podemos dizer que a Constituinte de 1891 foi um campo de batalha que focava mais em questões ideológicas do que práticas, além de ser uma continuidade das discussões internas dos diversos núcleos do partido Republicano (naquele tempo, os partidos eram estaduais, não nacionais como hoje). E aí são os conceitos que geram as grandes mudanças na nova carta constitucional.

Discutiu-se como o país se organizaria politicamente, se haveria a união dos estados ou se cada um teria autonomia próxima a de um país independente. O país ganhou com essa constituição o nome de “Estados Unidos do Brazil” (com “Z” mesmo) e questionava-se como o presidente da União seria eleito, se num modelo parecido com o norte-americano (pelo voto dos deputados estaduais) ou no modelo direto.

O parlamentarismo até foi uma opção cogitada, mas a necessidade de fortalecer o distanciamento do novo regime daquele que foi derrubado na noite de 15 de novembro de 1889 fez com que parlamentarismo e monarquia fossem apresentados como vinculados, e essa última seria o máximo exemplo de “anti-democracia” e falta de liberdade que os líderes da república estariam combatendo.

Um Estado (em teoria) laico

Uma das características lembradas mais insistentemente quando se fala da Constituição de 1891 seria a laicização que ela imporia às estruturas de governo, separando indiscutivelmente a Igreja Católica do governo e oferecendo aos cidadãos brasileiros uma experiência única de “liberdade religiosa”.

Se na letra da lei podemos até mesmo cogitar tal ação contra a Igreja, na prática as relações entre Igreja Católica e governo mantiveram-se substancialmente próximas, com a manutenção de um ensino religioso, da existência de cemitérios administrados por ordens religiosas – e consequentes impedimentos para cultos ou sepultamentos de “não católicos” – a existência de privilégios para a instituição e o clero católico, não estendido aos membros de outras crenças, cristãs ou não. A liberdade de fé ainda era limitada de muitas formas na vida prática.

Demarcando território

Talvez um dos grandes marcos da Constituição de 1891 foi a definição de que deveria ser efetuada a demarcação de uma área no Planalto Central para uma futura transferência da capital federal. Essa zona começou a ser estudada no ano seguinte, por meio da chamada Missão Cruls (que levou o nome do seu líder, o engenheiro belga Luís Cruls), que definiu uma zona de 14.400 quilômetros quadrados no estado de Goiás. Esta missão também fez os primeiros levantamentos topográficos da região e divulgou uma faceta do interior brasileiro bem diferente daquela que se imaginava na época, que atribuía ao Planalto Central uma imagem de lugar inóspito, propício a doenças e que seria, portanto, inviável para uma grande cidade-capital.

Apesar de todos os poréns, a primeira constituição do Brasil republicano trouxe algumas inovações para o país, como por exemplo o fim do poder Moderador. Mesmo gerando um cenário que fortaleceu as elites locais, possibilitou os primeiros passos para a mudança da capital federal, além de mudanças no ordenamento político e jurídico, com a possibilidade do habeas corpus e do fim da figura do senador vitalício, apesar de em nenhum momento tocar questões com indenizações aos ex-escravizados ou extensão de direitos as mulheres.

Givaldo Corcinio – historiador – ABC Digital

Governo na palma da mão

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