Um banco de vida: doação de sangue mudou a saúde no século XX
No início se achava que o sangue poderia mudar características do indivíduo, dando a ele força e traços animais. Depois era a própria vida, que fluiria nas veias daqueles que se foram ao receber o “liquido vermelho”. Doar sangue já foi fonte de renda para desvalidos, mas hoje é símbolo de desprendimento e cuidado com todos, exaltando a máxima do “fazer o bem sem olhar pra quem”
As campanhas no rádio e na TV falam sobre como é nobre e importante doar sangue e seus derivados. Cotidianamente somos lembrados da importância desse ato. Também é bastante presente a intenção de imprimir a percepção de que doar sangue traz em si o sentimento de amor ao próximo. E tais valores são se espraiando pela consciência dos indivíduos, sendo o sangue um elemento religiosamente sagrado e presente no nosso cotidiano, pontilhando máximas e provérbios que vinculam o sangue a entrega e ao comprometimento. Não é isso que “dar o sangue” evoca? Pois à medida em que o sangue é algo evocativo da vida (e da morte), ele é observado e estudado como meio para encontrar-se o reestabelecimento de uma saúde debilitada e frágil.
Primeiras experiências
A busca por entender sobre como a saúde poderia ser obtida ou recuperada fez com que durante muito tempo homem tentasse compreender o papel do sangue e de outros “líquidos” presentes no corpo. A descoberta de como funcionava a circulação do sangue no século 17 foi uma revolução que apenas foi superada com a descoberta do fator Rh, já no século 20. Com as descobertas nos mais diversos ramos da ciência entre esses dois pontos da história, o sangue ganhou o status de líquido da vida e, por isso mesmo, objeto para muitas experiências, buscando-se respostas para questões como: podemos substituir o sangue por outros líquidos, como água ou leite? É possível utilizar sangue de outros animais para “purificar” o sangue de um doente ou fortalecer o convalescente? Experiências nesse sentido se fizeram na Europa, em geral resultando na morte do paciente.
Já no Brasil, em 1879 foi apresentada uma tese na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (e dias depois na de Salvador) que mostrava como era possível a transferência de sangue diretamente de um doador para um receptor. Essa foi a primeira apresentação da técnica no Brasil e desde então o tema transformou-se em objeto de interesse coletivo, aparecendo em jornais especializados ou não com descrições tanto do método quanto das possibilidades até mesmo de “dar vida aos mortos”, juntamente com aplicações de oxigênio e choques de voltagens consideráveis nos recém falecidos.
Comércio de sangue
A partir do século 20, a doação de sangue passa a ser algo mais efetivo como forma de cuidado de saúde. Estudos e pesquisas foram trazendo conhecimentos que, especialmente com a descoberta do fator Rh, possibilitou um maior zelo no uso do sangue, diminuindo o risco de rejeição do sangue (o que invariavelmente causa a morte de quem recebe o sangue “incompatível”). Foi a Segunda Grande Guerra que forçou a adoção da transfusão de sangue como meio de cuidado com a saúde de forma mais ampliada, com melhorias no modo de armazenamento do mesmo por meio da descoberta de anticoagulantes e com a substituição das garrafas de vidro por bolsas plásticas para armazenamento e transporte do sangue a partir dos anos 1950. Contudo, não havia uma organização centralizada e unificadora para a doação e uso do sangue. Assim, organizações particulares criaram seus próprios “bancos de sangue” onde, para obterem estoques, incentivavam as pessoas a venderem seu sangue. Nesse cenário, por vezes, o “cliente” oferecia seu sangue em várias dessas empresas, o que acarretava muitos problemas tanto para quem oferecia o sangue como também para quem recebia, pois muitas vezes esse sangue não era testado, sendo fonte de doenças, ou o doador não estava em bom estado de saúde, colocando em risco sua própria vida.
Mudança no Brasil
Apenas a partir dos anos 1960 que o modelo de obtenção do sangue sob remuneração financeira começou a ser posto em questão, à medida em que associações médicas nacionais e internacionais questionavam como garantir a qualidade do sangue. A ação do governo é face importante dessa ação, começando com a atribuição de um dia (25 de novembro) para celebrar a doação voluntária de sangue e a implementação de leis para garantir a transfusão uma forma mais segura, com a testagem obrigatória do sangue. Na década de 1980, os movimentos de saúde reforçam a importância do cuidado com o sangue e gera a criação inicialmente do programa chamado Pró-Sangue, embrião da política dos Hemocentros, que surgem na segunda metade daquela década em diante. Foi apenas com a Constituição de 1988 que ficou completamente proibida a “remuneração pela doação de sangue, órgãos e tecidos”.
Hoje não se vende mais sangue para bancos particulares de sangue, mas os efeitos dessa prática ainda se faz sentir, com a grande parte do sangue doado sendo apenas de reposição. A doação voluntária é a possibilidade aumentar o “crédito dessa conta”. Mas nesse banco, quanto mais vermelha ficar a conta, melhor é para todos.
Givaldo Corcinio – historiador – ABC Digital