A primavera: dos mitos gregos às águas no Cerrado

As estações tropicais não são tão bem divididas quanto estudamos na escola. E a primavera do Cerrado surpreende quem olha para ela com curiosidade e tem ouvidos atentos

Quando estamos no início do aprendizado escolar, aprendemos que o ano divide-se em quatro estações: e que elas possuem características bem definidas: o calor do verão, as flores na primavera, o clima mais ameno e as frutas no outono, o frio do inverno. 

O Cerrado brasileiro não se encaixa nessas narrativas (principalmente as elaboradas no hemisfério norte), visto que nosso inverno é quente – e é tempo de festa em condições normais, com a possibilidade de ir para as concorridas praias do Araguaia. Nosso verão costuma ser úmido e chuvoso. Verdadeiramente, é como se fosse um longo verão marcado por seca e chuva. E entre a seca e a chuva, estão as flores e as frutas.

Nossas cidades, capitais do Cerrado como Goiânia e Brasília, foram planejadas para esse clima, desenhadas paras as cores da seca e das águas. Os construtores de Goiânia buscaram uma localização que possibilitasse o abastecimento de água abundante e o clima ameno, maximizado nos períodos de primavera. Além disso, previa-se a construção de diversos parques públicos para manter a condição salubre da cidade.

Do mesmo modo, Brasília foi planejada tendo em conta a necessidade de manter condições que garantissem a salubridade do local, com a construção do lago Paranoá. Entretanto, tanto as águas quanto os parques foram relegados a um segundo plano durante a expansão da cidade, colocando em risco os preceitos do seu planejamento. O adensamento e sua expansão têm pressionado todo o bioma da região, que tem perdido espaço para construções diversas, legalizadas ou não.

Não apenas os espaços urbanos extenuam os recursos e fazem com que a primavera diminua em cores e aromas. Longe das cidades, a expansão de um modelo de exploração de terras, com a introdução de monoculturas para atendimento de demandas e mercados internos e externos, faz com que grandes extensões de terras sofram com incêndios.

A despeito de todas essas dificuldades que a natureza vivencia nas últimas décadas por conta da forma como os homens se apropriam dela, ainda vislumbramos as narrativas que várias culturas desenvolvem suas próprias explicações para as estações. Assim como diversas outras coisas na nossa cultura, aquilo que vemos sobre as estações do ano não vem apenas dos estudos científicos, que explicam por meio de cálculos e observações, os momentos que dias e noites têm durações iguais; e quando a Terra inicia a jornada para mais longe (equinócio de outono), ou mais perto (equinócio de primavera) da estrela do nosso sistema solar.

Elas vêm também de narrativas míticas, como aquelas elaboradas na Grécia Antiga. Nelas, se compreende a mudança das estações a partir do mito de Perséfone. Segundo essa narrativa, o deus do submundo, Hades, se enamora da filha de Zeus com Deméter e a rapta para que ela se torne sua esposa. 

Os deuses buscam resgatar Perséfone do submundo, mas podemos dizer que Perséfone já havia se encantado com o esposo e ficou condenada a passar a metade do ano reinando com ele. Para os gregos, era a preparação de Perséfone para sua jornada de retorno ao submundo que explicava o motivo do mundo ficar frio durante o inverno, momento em que a deusa está indo para o reino do esposo. 

À medida que ela prepara a volta para “o mundo dos mortais”, o clima fica gradualmente mais quente, devido à alegria dos seus pais e da própria natureza. Convém lembrar que o submundo dos gregos não pode ser comparado com as narrativas que temos costume de escutar e às imagens do “reino inferior” oriundas das narrativas judaico-cristãs que correspondem ao inferno.

Pois no mundo tropical as estações não são definidas do mesmo modo que na Europa. E por ser tão diverso, o clima das terras brasileiras (e da América Tropical como um todo) chamou a atenção dos exploradores europeus. As narrativas sobre clima “saudável e ameno”, e da natureza que parecia lembrar o Éden, estiveram presentes em muitos escritos desses primeiros anos de contato. 

Essa percepção era reforçada pelas flores e frutos que se ofereciam pendentes em galhos e por sobre a terra por boa parte do ano. Essa euforia foi sendo substituída na mesma velocidade em que as investidas europeias de estabelecer-se na “nova terra” encontravam resistências dos povos originários. A terra luxuriante vai, aos poucos, transformando-se em um lugar perigoso e selvagem demais para manter os contornos de “paraíso terrestre” atribuído pelos primeiros europeus que por aqui aportaram.

Considerando que os mitos ainda andam entre nós, mesmo que não percebamos, podemos dizer que aqui Perséfone nunca volta ao submundo. Nessa primavera de espaços diversos, as flores que chegam antes, como as flores do ipê e do jacarandá. Quem realmente se abre na primavera do Cerrado é o espetáculo do coral de cigarras que antecipam a chuva e chegam para, diferentemente do que canta o fluminense Tom Jobim, abrir o verão (e a primavera).

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