Memória de Medos d’Outros Tempos: Mal de Hansen em Goiás
Ela já foi tida como castigo divino, foi caso de polícia e fomentou, ao seu modo, algum tipo de turismo. Hoje ainda é comum, porém mais comum – e causa maior sofrimento – o preconceito que é milenar como a doença
Quem assistia televisão nos anos 1980 e 1990 em algum momento foi exposto a campanhas do Ministério da Saúde em relação ao diagnóstico e tratamento precoce da hanseníase. Além da questão dos efeitos próximos e distantes da contaminação pelo bacilo de Hansen, o maior peso nas campanhas era no esforço pela desconstrução dos estigmas sociais que a doença carregava. Tida como “mal nacional” por médicos e pesquisadores desde a virada do século XIX para o XX, nas últimas décadas do século XX houve diversas mudanças de abordagem em relação à doença, desde a compreensão da infecção, passando pela relação com o doente e sua família, chegando mesmo à cura.
A designação hanseníase é muito recente quando pensamos na história da doença. Normalmente, ela era designada como morfeia ou lepra nas velhas narrativas, e ainda hoje é possível encontrar materiais em outros idiomas que utilizam particularmente a segunda denominação. No passado, essas designações acabavam rotulando diversas doenças de pele ou incapacitantes de membros, transmissíveis ou não.
Se tem algo que a hanseníase possui, é história. Ela é uma daquelas doenças muito conhecidas da humanidade desde seus primórdios fazendo parte de vários episódios importantes.
Na esfera da religião, podemos apontar as narrativas presentes nos escritos judaicos e cristãos onde, além de apresentar o próprio relato de milagres de cura, por meio de orações e sacrifícios, deixam registrado toda série de práticas rituais e sociais que o doente deveria adotar para não contaminar a comunidade. As práticas envolviam especialmente o distanciamento do indivíduo da comunidade, ficando isolado e passando a residir fora dos limites da aldeia.
O estigma social que recaía sobre os portadores da hanseníase fazia com que eles fossem tidos por impuros, o que acabava afastando-os de todas as atividades sociais e, entre elas, as práticas religiosas. Sendo uma doença altamente contagiosa quando não tratada adequadamente e que deixa sequelas bastante significativas, os portadores eram os indesejados da comunidade. Assim, curar hanseníase era uma mostra de poder, e estar próximo dos doentes um ato de compaixão.
Na idade média, alguns reis europeus (especificamente dos reis da França, da Casa de Valois, e reis da Inglaterra, da dinastia d’Anjou) tinham a fama de curar a hanseníase através de um simples toque. Por conta desse “poder” – que lhes seria concedido por serem considerados representantes Deus na terra – esses reis passaram para a história como reis taumaturgos. Mas ainda que houvesse essa possibilidade de cura, os portadores dessas doenças eram desprezados e acabavam dependendo de esmolas para viver seu “exílio” nos campos e fora das muralhas das cidades.
Veneza foi naquele tempo uma das primeiras cidades a destinar um espaço no tecido urbano especificamente para cuidados paliativos com esses doentes. Esse espaço servia também para isolar viajantes que adoeciam ao chegar das grandes jornadas que os comerciantes venezianos faziam, como pela rota da seda. Criaram então a quarentena (aquela época era um período de 40 dias para purificação do viajante doente, misturando aí questões físicas e espirituais) e o lazzaretto, reservado para doentes como os portadores de diversas doenças infecciosas ou repugnantes, entre elas hanseníase. No caso veneziano (mas não só nele), esse espaço ficou sob administração da Igreja, na ilha de Santa Maria Nazareth, e o espaço era conhecido como Casa de Lázaro, em referência à parábola bíblica “O rico e Lázaro”. Ambas as práticas tornaram-se correntes no mundo como modo de contenção da disseminação de doenças num mundo que estava se “globalizando”.
Relatos de viajantes dão conta que Goiás antes mesmo do século XIX já era afetado pela hanseníase – que as vezes confundida com sífilis. Viajantes que circulavam pelo país relatam de formas diversas essa presença, visto que as doenças acabavam por desenvolver-se chegando a condições extremas nas comunidades de Goiás e Tocantins. A doença afeta a pele e os nervos periféricos, sendo muito comum, quando não tratada, o enrijecimento das mãos que ficam como garras. Também surgem ulcerações que podem levar a amputação das extremidades dos membros (pés e mãos), além do “desmoronamento” da cartilagem do nariz e das orelhas e a imobilização das pálpebras. Durante muito tempo as populações contavam apenas com remédios “do mato”, amuletos e a fé para mitigar os efeitos das doenças, pois durante todo o século XIX houve falta de médicos formados e de hospitais em toda a província, além das boticas (farmácias) da época, segundo esses viajantes, serem poucas, mal organizadas e com produtos em más condições.
A doença nesse período era vista como hereditária, o que fazia a simples menção da condição uma marca social muito negativa. Assim, uma forma bastante impactante de destratar alguém era chamá-lo de morfético ou lazarento.
Prática comum relatada por muitos médicos do século XIX e início do XX, banhos terapêuticos eram usados como forma de aliviar as dores e mesmo buscar a cura para hanseníase e todo tipo de afecções de pele. As fontes de águas quentes presentes no sudeste goiano, nos atuais municípios de Caldas Novas e Águas Quentes, já no século XVIII atraiam muitos indivíduos que buscavam curas por meio das “águas vulcânicas” (um conceito errado que durante muito tempo utilizado para “valorizar” os poderes curativos das águas, segundo Auguste de Saint-Hilaire) ou, num período mais recente, na cidade de Lagoa Santa, no sudoeste goiano, próximo à divisa com o Mato Grosso do Sul. As caldas, antes de serem um espaço de diversão, eram um lugar terapêutico.
Em 1874 foi descoberto o bacilo causador da hanseníase e começa a se transfigurar a narrativa sobre a doença e seu cuidado. De um mal hereditário e castigo divino por conta de pecados e faltas do indivíduo, cientistas passaram a apregoar que era a falta de higiene a causa da doença, e por tanto, o melhor cuidado seria educar os pobres (apesar do bacilo se espalhar independente da condição social) a terem praticas higiênicas e, quando a doença já estava presente, a manutenção de distanciamento, além de medicamentos ministrados de forma bastante controlada.
Depois da ascensão de Getúlio Vargas ao poder, o Brasil, e Goiás por extensão, entra no período do moderno cuidado com o corpo e a saúde. A elite do país busca ser moderna e, isso significava ser saudável. Surgem então políticas de controle estatal das diversas doenças que se espalhavam de norte a sul e a hanseníase tem atenção particularizada. Contudo, as soluções adotadas eram de algum modo semelhantes as adotadas no século XIII na Europa: isolamento obrigatório supervisionado pelo Estado, sob a justificativa de que ele era o agente que poderia melhor cuidar dos doentes que precisavam de um tratamento longo contra uma doença muito contagiosa. Surge uma política de construção de leprosários e preventórios para lidar com os doentes e seus familiares.
Talvez um dos mais emblemáticos em Goiás seja a Colônia Santa Marta, onde se recolhiam compulsoriamente aqueles que eram diagnosticados com o mal de Hansen, sendo levados até mesmo por meio do uso da força policial. Em outros estados onde havia leprosários públicos, como na Bahia, as comunidades, por medo, ateavam fogo nos pertences do indivíduo diagnosticado com hanseníase e de sua família, expulsando-os da comunidade. Aqueles que dependiam da pessoa que tinha sido internada não podiam ficar junto com ela (e isso por vezes durava anos), ficando os preventórios encarregados de cuidar da educação e possível encaminhamento profissional dos filhos dos internos dos leprosários.
Toda uma estrutura técnica e burocrática foi criada para atender essa parte da população, mas é apenas nos anos 1970, com a introdução de um novo protocolo de tratamento com uso de antibióticos combinados que surgiram efetivas mudanças no cuidado com o portador da hanseníase.
Ainda assim, o Brasil na atualidade é considerado um país onde a hanseníase é endêmica, ficando atrás da Índia na quantidade de pessoas diagnosticadas. Goiás são registrados anualmente mais de 3600 novos diagnósticos positivos, sendo o sétimo estado brasileiro com maior incidência de novo casos.
Com os novos medicamentos, quem é portador do bacilo não transmite mais a doença já nos primeiros dias de tratamento, o que facilitou a adesão ao tratamento e dispensou a necessidade do isolamento compulsório. Isso também tornou dispensável o deslocamento dos filhos de pais em tratamento para o preventório. Assim, é possível cuidar de si e ainda daqueles que estão perto, curando-se e podendo ficar seguro no seu espaço. Se antes a distância da família e a afetação física da doença doíam, provavelmente hoje a maior dor é a do preconceito que ainda se faz sentir por aí.
Texto e pesquisa: Givaldo Corcinio/ABC Digital