Diário do Isolamento XXI – “Lembranças de um imaginário em série”
Penso em como estarão reagindo as crianças de hoje aos efeitos e notícias da pandemia, como isso pode afetar suas cabecinhas
Nos fins dos anos 70, minha família comprou uns terrenos lá para os lados do nordeste de Goiás. Era uma fazenda enorme, aproximados mil alqueires (goiano, de 4,84 hectares cada). Lembro que, quando alguém perguntava para meu pai o tamanho da parte que lhe cabia, respondia, meio na modéstia, meio na gozação: “Ah, é uma terrinha, não é muita coisa” (só depois, se a pessoa insistisse na metragem correta é que ele a definia). Mas não deixava de ser verdade, uma vez que divisão era de 100 alqueires para meu pai e os 900 restantes de propriedade de meu tio-avô.
Na herdade de meu tio-avô havia ficado também a sede original da fazenda, com currais, paióis, galpão e até uma mini serraria. Junto, vinha também uma matilha de cães de caça e um vaqueiro faz tudo que atendia pela alcunha de Alemão.
Ele era uma mistura de Mad Max com Pedro Malasartes; sabia tudo de motores, armas – chegava a montar algumas com partes de outras – curar feridas dos animais domésticos e os hábitos dos selvagens, melhores horários para pesca, as iscas mais eficientes, enfim, era do tipo de cara que saia para o mato só com um canivete na sexta e voltava na segunda com um porco-do-mato nos ombros, perguntando onde era o melhor lugar para fazer a fogueira. O típico herói de filme de ação, sem tirar nem por.
Foi por conta disso que eu, menino que nada conhecia do mundo mas imaginava o dobro de tudo, fiquei estarrecido ao saber da morte dele. Quem teria sido barra pesada o bastante para derrotar o Alemão, qual animal selvagem o teria atacado? Naquelas épocas ainda havia por lá muitas onças pintadas, manadas de queixadas, cobra então, nem se fala.
− A Maleita que matou ele! – Foi o que disse minha mãe, ao explicar para o meu pai que fim tinha levado o pobre rapaz.
A partir dali, toda vez que fosse fazer alguma coisa, uma variante dessa frase reverberava em minha cabeça: “Cuidado com a Maleita”, “Entra não, que a Maleita tá aí!”, “Vixe, corre que lá vem a Maleita!”.
Essa tal Maleita, que em minha meninice nem sabia quem era essa dona poderia ser, estava me tirando o sono. Cheguei a engolir o orgulho e perguntar para meu irmão, mas ele só resmungou um “Uai, Maleita é a Maleita! Pergunta besta”.
Meu drama só foi amenizado quando obtive a informação através de um de meus melhores amigos na infância (e por toda a vida): veio por meio de um livro. Lá constava que Maleita era um dos nomes pelos quais era conhecida a Malária ou Impaludismo. “Então o Alemão morreu foi de doente!” minha lógica infantil ficou bem satisfeita, porque o medo era de morrer de onça ou de sucuri, mas malária não dava medo, porque era febre e essa a gente tinha quase todo dia, ou sempre que tomava banho de chuva.
Penso em como estarão reagindo as crianças de hoje aos efeitos e notícias da pandemia, como isso pode afetar suas cabecinhas. Claro que elas têm acesso a muito mais informação do que a gente tinha nos rincões de épocas distantes, e naqueles tempos de comunicação precária, o que não tínhamos de informes completávamos com um tanto bom de imaginação. E tão treinada foi a minha imaginação, que chego a ouvir, lá do passado, aquela voz que me amedrontou tanto, só que atualizada: “Cuidado com o Corona”, “Entra não, que o Corona tá aí!”, “Vixe, corre que lá vem o Corona!”…
Mas logo me vem a certeza que estamos muito mais avançados cientificamente em comparação àquelas épocas e que dentro em breve tudo estará mais calmo, tanto que, para crianças como Heitor Augusto, o filho de meu primo que nasceu dias atrás, pode calhar de só conhecer o “tal Corona”, por livros ou filmes. É o que imagino agora.
Fiquem seguros.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital