Diário do Isolamento XVIII – “As cores que queremos ver”
…a trama ainda está se desenrolando
e não sabemos como ou quando tudo irá terminar.
Chrissie Watkins era uma jovem loira, bem apessoada e podemos dizer, aventureira. Enquanto participava de um luau na praia, nos arredores da cidade de Amity, decidiu tomar um banho durante a noite e correu para água. Só não contava em ser atacada por um animal enquanto nadava e morrer ali de forma selvagem e dramática. Parece ser um caso isolado, certo?
Na manhã seguinte, avisada por outro participante da festa, a polícia vai ao local e descobre os restos da garota, dilacerados e em péssimo estado, demonstrando que ela sofreu um ataque de forma bruta e mortal. Uma primeira autópsia é feita e é constatado que a causa mortis foram múltiplos ferimentos devido a um ataque de tubarão. Agora temos um culpado, não é mesmo?
O chefe de polícia, Martin Brody, ao saber disso decide fechar todas as praias para evitar que mais ataques ocorram e outras pessoas tenham o mesmo fim da pobre Chrissie. Mas, como aquela era cidade de veraneio, que vivia do dinheiro dos turistas, o prefeito Larry Vaughn, pensando no bem da economia local e no melhor para todos, dá seus pulos para que a notícia não estrague o feriado da independência, que inaugura oficialmente a temporada de férias (o que seria terrível para os negócios): consegue dar um jeitinho para que no atestado de óbito conste “acidente de barco”, que sua assessoria de imprensa abafe o caso e que o chefe de polícia aceite essa encenação, em uma reunião com seus vereadores e todos os comerciantes locais. Vão além e ainda oferecem uma recompensa de três mil dólares para quem eliminar o problema que tanta dor de cabeça tem dado a todos, sendo só um peixe grande. E, afinal, eles precisam salvar a economia, ok?
E, em um misto de pescaria de fim de semana com missão patriótica, um bando de amadores bebuns consegue (não se sabe exatamente como), matar um exemplar de bom tamanho e aspecto amedrontador. O prefeito e seu assessor de imprensa vibram e tiram várias fotos, para mostrar em todos os jornais que a ameaça havia sido vencida. E as eleições estão logo ali, certo?
Entretanto, no momento em que o monstro marinho está sendo exibido como um troféu de guerra, um jovem oceanógrafo chamado Matt Hooper, chega ao local e, após refazer a autópsia nos restos mortais de Chrissie, constata que o animal abatido não foi o mesmo que a matou. E, apesar de seus apelos como especialista em vida marinha, juntamente com os do chefe de polícia para o que o prefeito continue com a proibição, este não lhes dá ouvido, uma vez que era a autoridade máxima por ali. Dessa forma, as praias são reabertas para o “bem do povo e felicidade geral da nação”. E o que esses especialistas entendem de economia, né mesmo?
Ocorre que esqueceram de combinar com os russos, quer dizer, com o predador marítimo e, em uma tarde de sol convidativo, o jovem Alex Kintner (e um homem não identificado que estava em um barquinho vermelho), são atacados e mortos sob os olhares horrorizados dos turistas. E em uma praia ainda atônita, sua mãe, Sra. Kintner é a única voz que clama pela falta do filho. Será que o político que preferiu ignorar os especialistas poderia estar errado?
Para quem estava preocupado em perder um final de semana, após a partida em massa dos turistas, a pobre cidade de Amity percebe que toda a temporada já está perdida. E ainda tem que desembolsar dez mil dólares para que outro expert parta em uma missão de localizar e destruir a ameaça, quando então… Acho que aqui você já entendeu que a história se repete, certo?
A história acima é a base do filme Tubarão, grande sucesso do cinema – dirigido por Steven Spielberg – que foi adaptado do livro do mesmo nome, escrito por Peter Benchley. Assisti novamente no domingo de Páscoa, lembrando do medo que tive ao assisti-lo pela primeira vez, enquanto devorava lascas de chocolate com a voracidade de um Carcharodon carcharias, o nome de batismo do popular tubarão-branco.
Citando uma outra obra cinematográfica (Alex DeLarge, Laranja Mecânica), “É curioso como as cores do mundo real parecem muito mais reais quando vistas no cinema”; interessante como uma obra de ficção do longínquo ano de 1975 pode dialogar com a atualidade, em especial o momento pelo qual passamos agora o que me lembra que uma das definições de analogia é “uma relação de semelhança entre fatos e coisas”.
Como já foi dito acima, temos o governante que, em nome da economia – e já pensando também nas próximas eleições, resiste em tomar medidas protetivas, como a interdição das praias em claro choque de ideias com o chefe de polícia; o especialista que não tem seus conselhos seguidos pelo mesmo motivo; empresários locais que colocam seus negócios acima da segurança de todos, inclusive dos turistas, seus clientes e por aí a banda continua tocando. E, em meio a tudo isso, a lista de vítimas do predador só aumenta.
Diferente de assistir a uma reprise, na qual lembramos da maioria das cenas e como tudo ocorre até o the end, em nossa realidade verde amarela, a trama ainda está se desenrolando e não sabemos como ou quando tudo irá terminar. O que temos são projeções e expectativas, além dos exemplos de outros lugares. É necessário manter os esforços para que voltemos a ver o mundo com as cores que queremos ver.
Ou, então, corremos o risco de protagonizar outra cena marcante do filme, quando a Sra. Kintner, a mãe de uma das vítimas, avança até o chefe de polícia, vibra um sonoro tapa em seu rosto e diz as palavras: “Você sabia que havia um tubarão lá fora, sabia que era perigoso, mas, mesmo assim, deixou as pessoas nadarem. Meu filho está morto, eu só queria que soubesse disso”.
Em tempo, a atriz Lee Fierro, que interpretou essa mãe enlutada, morreu dia 06 de abril nos Estados Unidos, aos 91 anos. Vítima do coronavírus.
Fiquem seguros.
Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital