Memória de Medos d’Outros Tempos: A Hespanhola
Um grande medo assolou o mundo por completo, e Goiás não ficou alheio a esse temor: a gripe espanhola causou mortes em profusão, aflorando imagens terrificantes aos contemporâneos
A humanidade anda aos abraços com o medo. Sejam doenças, violências ou qualquer coisa de inesperado, o medo é algo que está presente no cotidiano da sociedade e buscar formas de lidar – ou esquecer – sua existência é um exercício diário para o indivíduo. Assim, muitas vezes diante de um medo atual – como da pandemia de coronavírus – a memória de outros desafios fica tão enterrada no fundo das lembranças que acaba por perder-se e não usamos mais ela como referências para saber como nos comportar diante do desafio que nos é imposto.
102 anos atrás, entre os anos de 1918 e 1919, um grande medo assolou o mundo por completo, e Goiás não ficou alheio a esse temor: a gripe espanhola (ou influenza hespanhola como era nomeada a doença em alguns jornais da época) causou mortes em profusão, aflorando imagens terrificantes aos contemporâneos. Acredita-se que mais de 300 mil brasileiros morreram nesse período por conta da gripe. No estado de Goiás acredita-se que o número de mortos pode ter sido de 2 mil num período de menos de 9 meses, quando se deu o pico do surto no estado (entre agosto de 1918 e maio de 1919).
A doença chega no Brasil por meio de um navio a vapor de bandeira inglesa, chamado Demerara, que fazia uma linha regular entre a Europa e o Brasil e aportou no Recife, Salvador e Rio de Janeiro em 1918, num momento no qual não havia medidas restritivas para o desembarque de pessoas com sintomas de gripe, apesar do surto já estar em plena expansão na Europa. Cabe notar que a gripe não surgiu na Espanha, como pode se supor. Apesar de não ser muito claro onde o vírus surgiu, foi na Espanha que as informações da epidemia de gripe começaram a surgir, pois o país, que não estava envolvido na I Guerra Mundial, não censurava a imprensa (prática comum entre os países envolvidos na guerra) que noticiou livremente a expansão da doença.
Em Goiás, a doença chega no segundo semestre do ano de 1918, pelo sudeste do estado. Catalão, Ipameri e outras cidades, alcançadas recentemente pela ferrovia e mesmo por estradas de rodagem, foram o foco inicial dos grippados, sendo que em novembro daquele ano a doença chega na capital do estado.
Com a doença, a sociedade desorganizou-se em diversos aspectos. Faltavam funcionários para os trabalhos burocráticos, médicos (só na cidade de Goiás dos seis médicos residentes na cidade, ao menos 4 ficaram hespanholados) e de segurança no estado (quarteis inteiros ficaram guardando leito ou convalescentes), as aulas ficaram suspensas por tanto tempo (mais de 70 dias) que no ano de 1918 não houve avaliações finais e os alunos foram aprovados por ofício.
Se hoje nós temos uma overdose de informações, com meios extremamente rápidos de divulgação de dados, receitas e notícias (verdadeiras e falsas) sobre pandemias como a do coronavírus, durante a propagação da gripe espanhola, os meios de comunicação também sofreram baixas. O telegrafo, meio mais veloz de comunicação então e que muitos jornais utilizavam para ter acesso a mensagens de outros pontos do país e do mundo, dependia de operadores que “digitavam” as mensagens no equipamento que as enviava de um ponto a outro da rede. Em alguns momentos da crise, mensagens que chegavam em instantes passaram a demorar até oito dias para serem preparadas para o envio, por conta da falta de operadores.
A sociedade goiana era ainda muito ruralizada e as atividades se davam a partir das relações de mutuo conhecimento e ajuda, as restrições sociais que as autoridades tentaram impor, sem muito sucesso, acabaram por prejudicar as atividades produtivas. Alguns pesquisadores chegam a apontar que o desabastecimento que Goiás sofre em 1920 teria ligação com a falta de braços para o plantio na virada do ano entre 1918 e 1919, já que a gripe espanhola chega em Goiás justamente na época da semeadura dos campos.
Para conter a influenza o governo tentou usar as práticas conhecidas: isolamento social, desinfecção das casas (especialmente dos mais pobres, já que na época achava-se que eram eles os principais focos de doenças infecciosas), ações de limpeza pública e cordões sanitários. Missas foram desencorajadas, sendo feitas de forma mais breve. As mortes foram tantas que se requisitou à igreja não anunciá-las pelo badalar dos sinos das igrejas. Registra-se que o dia de Finados do ano de 1918 na cidade de Goiás foi particularmente estranho, com a proibição da visitação aos cemitérios.
Mas como a saúde daquele período estava a cargo dos municípios, os quais não tinham verbas para saúde (ainda não existia um sistema de saúde universalizado e público), os doentes precisaram recorrer por vezes a benévolos que faziam hospitais improvisados para atendê-los. Os municípios demandaram por vezes de créditos dos impostos futuros para pagar farmacêuticos que forneciam remédios para amenizar os efeitos da gripe. Apesar de se saber da existência do vírus, o combate ainda era precário, não existindo remédios específicos para gripe, restando a população buscar remédios como sulfato de quinino (usado para malária), Pó de Dover (mistura de raiz típica do Mato Grosso – a ipecacuanha – e ópio usada para combater tosse), assim como antipirina (remédio para baixar febre e diminuir dores reumáticas e ancestral da aspirina) e cafeína. Aqueles que ficavam doentes muitas vezes não achavam os “remédios de farmácia” para adquirir (ou quando achavam, tinham preços proibitivos) lançavam mão da sabedoria ancestral e popular, tomando especialmente chá de alho para mitigar o mal estar da gripe. Outro preparado que se tornou popular em São Paulo, uma das cidades mais atingidas pela gripe, para “curar o doente” levava açúcar, sumo de limão e cachaça. Finda a gripe, ficou o “remédio”: a caipirinha.
E assim como as outras gripes anteriores ou posteriores, do mesmo modo que a espanhola chegou, ela foi embora. Passado o período de um ano, a virulência da gripe voltou aos patamares anteriores e não se pensou nela. As sequelas que a “grippe hespanhola” deixou não eram físicas, mas emocionais, tornando-se a referência de epidemia global que resistiu aos eventos que atravessaram o século XX, estando presente ainda hoje nas narrativas sobre a sociedade e seu enfrentamento da morte “invisível”.
Texto: Givaldo Corcinio/ABC Digital