Diário do Isolamento VII – “Antes que se derrame o leite”

Olhando para os números de Itália e Estados Unidos e para os dois atos que os provocaram, alguém por aqui está realmente disposto a bancar a ópera bufa “O Brasil não pode parar”?

Assim como várias modalidades esportivas, a Fórmula Um está em recesso por conta da pandemia. Mas há ao menos outras duas corridas sendo disputadas no momento: uma sobre quem conseguirá produzir a primeira vacina efetiva contra o novo coronavírus. Trará paz e alívio para a crise, além de glória – e possível Nobel – ao seu descobridor.

A outra disputa, inglória e mortal, é para ver qual país terá mais infectados – o que influi diretamente na quantidade de mortos. A China, obviamente, saiu na frente e abriu larga vantagem enquanto o resto do mundo ainda curtia as festas de fim de ano e a Covid-19 era só um nome estranho para se usar nos memes. E continuou a correr sozinha; virou ano, passou carnaval, nos esbaldamos nas praias, bares, estádios lotados e algumas manifestações.

Com o tempo e a circulação das pessoas, novos competidores foram adicionados nesta Maratona da Morte. A Itália apareceu entre o bolo dos intermediários europeus, mas enquanto o vírus engatinhava – embora já tivessem 12 mortos – alguém teve a magnífica ideia de lançar uma campanha chamada “Milão não para”, buscando salvaguardar a economia da capital da Lombardia. Tal medida, sabemos hoje, mostrou-se um erro do tipo…

Para exemplificar o tipo do erro, faremos aqui um intermezzo – aquele espaço entre atos de uma ópera – buscando nos ancestrais italianos o devido termo:

Marco Licínio Crasso, foi o homem mais rico da antiga Roma, talvez uma das maiores fortunas de toda a antiguidade. Segundo o historiador Plutarco, nosso dileto Marco acumulou sua vasta riqueza “à custa do fogo e do sangue, fazendo das calamidades públicas a sua maior fonte de renda.” Consta que – por conta de seus contatos – se especializou em comprar as propriedades de pessoas que caíam em desgraça durante a guerra civil da república, assim como adquirir por uma ninharia os prédios de famílias que estivessem à beira da ruína. Um especulador imobiliário voraz, para se dizer o mínimo.

Em uma época que dinheiro significava poder (E isso hoje é deferente? Sim, porque agora você não pode montar um exército particular e sair promovendo guerras por conta própria), ele queria muito mais. Queria a glória militar. Mas tendo rivais do porte de Pompeu e Júlio Cesar – que lhe devia inclusive uma quantia considerável – isso ficava bem difícil. Mesmo tendo vencido a maior revolta de escravos daquela época, a do gladiador Espártaco, os feitos dos outros dois ainda o sobrepujavam.

Deste modo, montou um exército às suas custas e invadiu o Império Parta, nas terras do atual Irã, tentando alcançar assim uma vitória de peso. Sem conhecer corretamente o terreno, esnobando a ajuda de reinos vassalos – como a Armênia – o clamor de seus soldados e confiando tão somente na própria intuição, marchou com seus homens para uma região árida, enfrentando um inimigo que o exauriu com escaramuças no estilo guerrilha, até que foi finalmente vencido. Segundo Dião Cássio, outro autor clássico, os partas o executaram derramando ouro derretido em sua garganta, que era para aplacar sua ganância. Sua campanha foi tão desastrosa que a partir dali, todo grande erro foi considerado um erro crasso. E este é adjetivo do erro italiano. Um erro de mais de oito mil mortos. 

Fim do intermezzo, ato II.

Já nos Estados Unidos outro personagem que também fez fortuna a partir de negócios imobiliários, não deu ouvidos a médicos e especialistas para que fosse praticada ali a quarentena, tentando evitar que se replicasse em terras americanas o que acontecia na Europa, de que a Covid-19 chegaria lá e seria catastrófico para os serviços de saúde. Como todos sabemos, Trump não se rendeu a estes apelos e apostou suas fichas na preocupação com o mercado, em seguir a economia como se nada fosse acontecer, bastava que lavassem as mãos e estava tudo bem.

Os últimos boletins sanitários dão conta de que os EUA estão hoje na incômoda liderança daquela corrida que falamos no começo do texto, a inglória de estar na ponteira mundial de casos do novo Coronavírus (que conta ainda com participantes de peso, como Reino Unido, Alemanha, Espanha, Brasil e o resto do mundo) – tendo por volta de 93 mil casos e 1.450 mortes. E contando…

Olhando para os números de Itália e Estados Unidos e para os dois atos que os provocaram, alguém por aqui está realmente disposto a bancar a ópera bufa “O Brasil não pode parar”?

Ainda bem que os vários governos estaduais têm se levantando contra determinações do Planalto, buscando com o isolamento social resguardar as pessoas e dar tempo para que os serviços de saúde possam enfrentar corretamente essa epidemia, pois uma coisa que nunca deu resultados foi chorar o leite derramado.

Fiquem seguros.

Texto: Cristiano Deveras/ABC Digital

Governo na palma da mão

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