Lei seca morre nos tribunais
Apesar da boa intenção com que foi aprovada (reduzir as mortes no trânsito e punir com rigor condutores embriagados), a Lei 11.705, apelidada de lei seca, corre o risco de parar nos tribunais do País. Isso porque, paralelamente ao texto, houve alteração no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que estabelece teor alcoólico mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue. Desta forma, a Justiça entende a necessidade de comprovação técnica por parte da polícia, o que só pode ser feito por meios hábeis (bafômetro e exame de sangue).
O detalhe passaria despercebido se a Constituição não garantisse ao réu o direito de não produzir prova contra si. Na prática, isso significa que só faz teste do bafômetro e exame de sangue quem quer. O resultado é que a ausência de provas técnicas que comprovem a embriaguez tem absolvido réus em todo o País, já que não há outros meios legais aceitos pelo Judiciário. Segundo levantamento do advogado Aldo Campos Costa, 80% dos motoristas que se recusam a fornecer provas são absolvidos.
Os dados foram coletados entre junho de 2008 e maio de 2009. Foram encontradas 159 decisões em tribunais de todas as regiões do País. Pela lei, a acusação deve fornecer prova material de que o acusado dirigia sob efeito de álcool, o que é aceito por tribunais de todo o País, inclusive Goiás. O problema é que, na interpretação dos juízes, o artigo 5º, inciso 63 da Constituição, garante ao réu o direito de não produzir prova contra si. Na prática isso significa permissão para recusar a fazer os exames necessários para detecção.
Interpretação ampla
O autor da pesquisa, Aldo de Campos, afirma que a interpretação do direito de ficar em silêncio é ampla. A Constituição afirma que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”. Os juristas simplesmente entendem que manter o silêncio significa não produzir provas, no caso, por meio de testes de bafômetro ou exames de sangue. “O problema é que este direito é entendido muito além do necessário”, avalia.
Embora a pesquisa não tenha dados de Goiás, desde julho deste ano, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) segue os TJs do resto do País. Assim, todo réu que não tenha fornecido provas de que dirigia bêbado se livrará da prisão, o que só serve para aumentar o sentimento de impunidade. “As saídas são, ou a restrição do entendimento do artigo da Constituição ou uma mudança na lei”, aponta o advogado.
O parecer do Judiciário permite sentenças como a proferida pelo TJ goiano, em julho deste ano. Em 2006, um motorista, visivelmente embriagado, quase atropela ciclista na Avenida Jaraguá, Setor Campinas. O homem então adormeceu dentro do veículo, parado no meio da via, sendo preso pela Polícia Militar.
Apesar de a prisão ter acontecido dois anos antes da lei seca, esta o beneficiou com base na Constituição, que garante retroação em benefício ao réu. Sem comprovação do teor alcoólico, que não fez teste do bafômetro, o réu foi absolvido, em segunda instância, com base na nova lei.
Brecha
A brecha na lei vale apenas para as sanções penais (prisão de seis meses a um ano). Mesmo que escape da cadeia, o condutor estará sujeito a punições administrativas, como a multa de R$ 955, sete pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e suspensão desta por um ano, além de retenção do veículo.
Para Advocacia Geral da União, rejeitar exame é crime
Outra saída para garantir a constatação técnica de embriaguez é autuar o condutor por crime de desobediência. Em julho deste ano, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu parecer afirmando que quem se recusa a realizar o teste do bafômetro ou fazer exame de sangue pode ser preso.
O parecer da Advocacia Geral da União foi solicitado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), após estudos sobre a legalidade do uso de bafômetros. A pena por desobediência varia de 15 dias a seis meses de prisão, portanto inferior à aplicada por embriaguez.
Injustiça
Antes da alteração do artigo 306, a Lei de Crimes de Trânsito aceitava o exame clínico (constatação da embriaguez mediante observação) como prova para acusar o condutor. “A lei é injusta porque pune os desinformados que colaboram com a polícia. Quem se recusa a fazer o teste não é preso”, afirma a titular da Delegacia Estadual de Investigação de Crimes de Trânsito (Dict), Edilma de Freitas.
Apesar da brecha, Edilma de Freitas afirma que poucos se recusam a oferecer prova. Desde janeiro deste ano a delegada flagrou 196 motoristas dirigindo sob efeito de álcool. Ironicamente, menos de dez se recusaram a soprar no bafômetro ou fornecer sangue. “Isso é um problema da lei, que é burra. Quem é bonzinho e colabora com a polícia é preso”, critica a delegada.
Rodovias
Nas rodovias federais que cortam Goiás também são poucos os condutores que se recusam a fornecer provas da embriaguez. Desde o início deste ano, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) registrou 913 flagrantes nas BRs. O número é bem maior do que todo o ano de 2008, quando 647 pessoas foram flagradas. Segundo o diretor de comunicação da Polícia Rodoviária Federal, Newton de Morais, a porcentagem de motoristas que se recusam a colaborar é inferior a 2%.
Flagrantes
As rodovias goianas, por sua vez, registraram 119 flagrantes de motoristas bêbados, dos quais nove se envolveram em acidentes. A Polícia Rodoviária Estadual (PRE) não soube informar quantos acusados se recusaram a soprar o bafômetro ou fazer exame de sangue.
Fonte:DM