Goiás tem 100% das reeducandas do CIS Consuelo Nasser trabalhando

O índice contribui na redução da reincidência criminal e melhoria do ambiente prisional.

Goiás atinge 100% de ocupação carcerária feminina no CSI Consuelo Nasser.

Por Lívia Amaral

Fotos: Eduardo Ferreira

O clima tranquilo e o verde da horta e da grama poderiam fazer com que um visitante de primeira viagem se esquecesse por um segundo onde está. A criança no balanço embalada pela mãe poderia estar em qualquer parque. A rotina de trabalho, os horários a serem cumpridos, o diálogo entre o chefe e o empregado não parecem ser diferentes de uma empresa qualquer. No entanto, os altos muros, as grades e os agentes armados mostram que aquele é o Centro de Inserção Social (CIS) Consuelo Nasser – Presídio Feminino, que integra o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Esse ambiente diferenciado reflete o trabalho desenvolvido na unidade, que conseguiu que 100% das presas tenham alguma ocupação.

De acordo com a Agência Goiana do Sistema de Execução Penal (Agsep), há 44 mulheres custodiadas na unidade. Todas elas trabalham, seja em fábricas existentes no Complexo Prisional, na horta do CIS ou em serviços de manutenção do prédio (cozinha, limpeza, entre outros). Dezessete delas também estudam. Os benefícios dessa ocupação vão desde a reinserção social da presa, capacitação profissional que a prepara para o mercado de trabalho, conscientização do seu papel na sociedade, queda nos índices de reincidência criminal, até a diminuição de conflitos no ambiente prisional.  Confira trechos da entrevista com o presidente da Agência Goiana do Sistema de Execução Penal, Edemundo Dias.

[singlepic id=102 w=320 h=240 float=left] Anariê Silva Martins, 35 anos, não imaginava que a fábrica de tachas de iluminação, em que trabalha no presídio feminino, pudesse representar uma mudança em sua vida. Além de acelerar o tempo dentro da unidade, o seu bom desempenho fez com que ela recebesse propostas para continuar a trabalhar na empresa ao sair da cadeia ou abrir sua fábrica terceirizada.

“Estar trabalhando ajuda. É outra visão. Você não vê as horas passarem, sua pena passa mais rápido e sem falar que o próprio presídio te oferece novas oportunidades, te dá mais credibilidade”, comenta. Ela afirma que com a remição (abatimento da pena por dia trabalhado), ficará cinco meses a menos na prisão. Cumprindo pena por dois crimes diferentes, teria que ficar dois anos e quatro meses em regime fechado. Com o trabalho, após cumprir um ano e sete meses, conta as horas para sair. A previsão é que isso ocorra em quatro meses.

“A possibilidade de estudar e de trabalhar é extremamente importante no processo de ressocialização. É importante qualificar e valorizar, não apenas ocupar o tempo, mas permitir a recuperação da dignidade que a prisão elimina”, avalia a doutora em Sociologia pela UnB e professora da UFG, Dalva Borges de Souza. Além dessa valorização, a presa também consegue diminuir sua pena por meio da remição. A cada três dias trabalhados, ela cumpre um a menos de pena.

[singlepic id=105 w=320 h=240 float=right]O proprietário da Esfera Sinalização, Ebert Sousa, afirma que há muitos diferenciais que tornam a produção com uso de mão-de-obra carcerária atrativa para o empregador. O empresário que investe na mão-de-obra carcerária recebe incentivos fiscais do Governo de Goiás, faz um trabalho de relevância social e tem custos de produção reduzidos (veja o quadro abaixo).

Ebert Sousa, que produz materiais de sinalização, sentiu o reflexo positivo imediato. Sessenta por cento da produção é feita na unidade localizada no presídio feminino, que tem potencial de fabricação de 100 mil tachões/tachinhas de iluminação por mês. “Isso na proporção equivale a 200 quilômetros que nós poderíamos sinalizar mensalmente com itens de sinalização derivados de uma indústria de 100% de mão-de-obra carcerária feminina”, pontua. A perspectiva do empresário é levar toda a produção para a unidade. Confira trechos da entrevista de Ebert.

[singlepic id=103 w=320 h=240 float=left]O Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia tem nove fábricas e uma escola para Educação de Jovens e Adultos. Os presos têm oportunidade de trabalhar, iniciar e concluir seus estudos, e se capacitar profissionalmente para o mercado de trabalho. Neste momento, por exemplo, estão sendo ofertados mais de dez cursos de capacitação diferentes. Entre eles para encanador, eletricista e culinarista.

O que ficou para trás

Quando começou auxiliar a amiga a aplicar o golpe Boa Noite Cinderela (em que se dopa a vítima para roubá-la), Anariê não acreditava que sua vida poderia mudar negativamente. Na primeira vez que cumpriu pena, esbanjava dinheiro e afirmava que qualquer valor poderia ser recuperado rapidamente quando estivesse em liberdade. Casada e mãe de duas filhas, “sua vida esperou” por ela do lado de fora, durante o pouco mais de um ano em que esteve presa.

Ao voltar para as ruas, começou a fabricar notas de dinheiro. Era ela quem mantinha o alto nível financeiro da família. Não demorou muito para que fosse presa novamente, mas dessa vez “sua vida” não apenas seguiu sem ela, mas também desmoronou.

Após estar presa há dois meses, ela descobriu que o marido estava com outra mulher. Decidiu, então, acabar com o casamento de 18 anos. A filha de 15 anos engravidou. A filha de 18 anos largou a faculdade e foi morar com um namorado criminoso, que a engravidou e foi assassinado em seus braços, dentro de sua residência. Anariê não estava lá. Não pode apoiar as filhas. Não pode ajudá-las a superar. Segundo a reeducanda, as lembranças dessa ausência são amargas. Confira trechos da entrevista de Anariê.

“Você acha que dinheiro compra tudo. Só quando você está aqui e decide mudar sua vida é que você vê que o dinheiro não é nada”, afirma. As limitações da vida na cadeia a fizeram refletir. “Você precisa de autorização para ver um filho seu. É Lei, você precisa, mas se eu não tivesse errada eu não passaria por isso”, comenta Anariê. Ela destaca que sua família e o trabalho desenvolvido pela equipe multidisciplinar e agentes da Agsep foram fundamentais para sua mudança de comportamento e abertura de possibilidades.

Ao contrário da maioria das presas, Anariê sempre foi de uma família financeiramente estável. Sua entrada no mundo do crime, segundo ela, teria ocorrido por capricho. Tinha ganhado da avó uma caminhonete S-10, mas queria trocá-la por uma de cabine dupla. “Aqui você aprende a viver com pouco e na rua certamente você vai viver também. Foi então que eu decidi que eu não quero mais aquilo. Porque se aqui, com todo o meu sofrimento, eu consigo viver com pouco, por que na rua eu não vou viver?”, argumenta. Confira mais trechos da entrevista da Anariê.

Apesar do ex-marido não participar ativamente dos crimes, a detenta conta que ele era conivente e usufruía do dinheiro obtido ilegalmente. Quando os dois foram presos por falsificação, ela assumiu toda a culpa para que ele fosse liberado. “De que ia adiantar nós dois presos? Coloquei a culpa em mim para proteger ele, mas quando eu precisei ele me abandonou. Ele sabia o que eu fazia e usufruía. Ele era conivente. Se ele falasse: se você não parar nós dois vamos separar, eu teria parado. Eu não culpo só ele, eu me culpo também (sic)”, comenta.

Comprometimento

Goiás atinge 100% de ocupação carcerária feminina no CSI Consuelo Nasser.

Para conseguir que 100% das reeducandas de Aparecida de Goiânia estejam empregadas em alguma atividade, a Agsep tem desenvolvido um trabalho diário de convencimento. No entanto, o primeiro que deve ser convencido é o gestor prisional.

“Não somos simples carcereiros. Porque é muito fácil ser considerado a palmatória do mundo, aquele que vai cumprir a prisão de uma pessoa e fechar um cadeado, e colocar uma pessoa atrás das grades. O nosso trabalho ganha uma dimensão transcendental quando a gente consegue se convencer, primeiramente a nós, de que nós podemos transformar uma vida, melhorar uma vida, dar uma oportunidade para uma vida. Então isso foi disseminado como uma ideia, e hoje já permeia a mentalidade de praticamente todos nós que trabalhamos no sistema prisional”, argumenta o presidente da Agsep, Edemundo Dias.

[singlepic id=104 w=320 h=240 float=right]Dias complementa que “ainda prevalece na sociedade a cultura de que bandido bom é bandido morto, mas nós não como agentes públicos do Estado não podemos absorver esse paradigma distorcido, cruel e ineficaz. Então, nós estamos trabalhando no sentido contrário, de que é possível sim a gente transformar a realidade para melhor”.

A remição de pena é o primeiro estímulo para esse emprego e se torna o primeiro passo dessa persuasão. A partir do momento em que desenvolvem alguma atividade, as presas começam a criar perspectivas e esperanças de viver na legalidade. Além do diálogo com os gestores e agentes, as presas são atendidas por uma equipe multidisciplinar, que realiza seu acompanhamento psicológico e de toda a área da saúde (veja o quadro).

“Nós convencemos as pessoas através dos próprios diretores das unidades, do nosso serviço de assistência social, dizendo o seguinte: você vai ter a remição de pena e isso é muito bom porque você vai diminuir o tempo de privação de liberdade, você tem um salário para ajudar a sua família e para se manter nas suas necessidades básicas, o tempo vai passar mais rápido. Porque a ociosidade é muito ruim aqui dentro. Então, esse convencimento e a credibilidade que a gente vai adquirindo junto a própria população carcerária é o que nos legitima, é o que nos qualifica”, explica Edemundo Dias.

[singlepic id=100 w=320 h=240 float=left]O modelo existente no presídio feminino também é replicado em todo o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. O objetivo é criar oportunidades de trabalho, capacitação profissional e educação para os detentos. É reeducação, reintegração e reinserção social por meio do trabalho.

A reincidência criminal (pessoas que cometem crime voltam a delinquir) no Brasil, segundo a Agsep, está em torno de 70%. A reincidência criminal da mulher é menor do que a do homem. “Talvez porque ela sofra mais, reflita mais, ela tenha uma sensibilidade maior nesse particular. Agora, aqui em Goiás com esse trabalho que nós temos desenvolvido nós temos conseguido mensurar a diminuição da reincidência no geral tanto do público masculino, quanto na população carcerária feminina”, expõe Dias. Os dados mostram que a taxa de reincidência masculina em Goiás é de 50% e a feminina 30%. A média feminina nacional é 55%. Confira mais trechos da entrevista de Edemundo.

Leia mais: Levantamento revela perfil das reeducandas goianas.

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