Um Plano do Passado para o Futuro

Por  Tadeu Alencar Arrais

Professor Associado IESA/UFG; Pesquisador do CNPq, nível 1D.

Como avaliar a importância histórica de uma decisão governamental? Como avaliar, no plano territorial, o impacto dessa decisão? As respostas para essas interrogações, certamente, passam pelo resgate e leitura crítica dos planos de intervenção governamental. Essa leitura, obrigatoriamente, deve deter-se não somente nas questões da conjuntura econômica, mas, também, na conjuntura política que determina, em primeira instância, a eficiência do planejamento.
O Plano de Desenvolvimento Econômico de Goiás é considerado, por assim dizer, “fundador” daquilo que podemos classificar de planejamento territorial integrado. Não se trata de uma convenção de ordem acadêmica, mas de uma constatação de ordem documental e empírica. Isso não significa, no entanto, que não tenha existido preocupação anterior com o planejamento governamental. A própria história da edificação de Goiânia prova os antecedentes do planejamento governamental, mesmo que em escala distinta. A relevância do Plano de Desenvolvimento Econômico (PDE), conhecido como Plano Mauro Borges (1961-1965), resulta de sua originalidade que é, por sua vez, tributária das condições vigentes do planejamento na escala nacional.  O PDE é produto de um tempo em que o país respirava planejamento. As particularidades do PDE resultam das seguintes características:

  1. Diagnóstico econômico. Muito embora já existissem dados sistematizados sobre a economia brasileira na escala estadual e municipal, o diagnóstico econômico ultrapassou a compilação de dados secundários. Um inventário dos recursos, acompanhado das características da infraestrutura, especialmente energia e transporte, aparecem como suporte explicativo para a estrutura econômica de um território de dimensão continental. O diagnóstico, centrado na década anterior, destacava a predominância da agricultura, seguida dos serviços, com um crescimento progressivo, mas ainda pouco expressivo, do setor industrial.  É bom lembrar que o território goiano, a partir da década de 1950, passava por uma transformação no padrão de acumulação anterior, protagonizado, por assim dizer, pela “Fazenda Goiana”, para utilizar a expressão do economista Luís Estevão. Para comprovar tal hipótese é suficiente verificar o padrão de trocas desiguais a partir do fluxo de importação e exportação de produtos pela Estrada de Ferro Goiás. Em 1944, o arroz beneficiado ainda era o maior produto exportado, em peso e valor da produção, pela Estrada de Ferro Goiás. No tocante à importação, a gasolina, o açúcar e o sal agrupam os maiores valores, como descrito nos Relatório da Estrada de Ferro Goiás, de 1945.  Esse modelo, regionalmente encaixado com a área de influência imediata da Estrada de Ferro Goiás e do Mato Grosso Goiano, começa a se modificar a partir da década de 1940, chegando na década de 1950 e 1960 bem diferenciado, anunciando a maior concentração econômica e demográfica no sentido Leste-Oeste. Goiânia, Anápolis e Brasília passam a determinar, por assim dizer, as demandas econômicas regionais. Aliás, a modificação da estrutura econômica dependia, como destacado no PDE, do investimento em infraestrutura, destacadamente circulação e energia. A progressiva diversificação das atividades econômicas foi seguida da concentração regional. Apesar da predominância do setor primário, o setor secundário começa a se concentrar nas regiões de Goiânia e de Brasília. A espacialização dos setores de alimentação, minerais não metálicos, madeira e mobiliário atesta a relação entre a urbanização e a insipiente industrialização. A partir dessa compreensão foram construídos alguns "cenários" para a economia goiana. A importância dos "cenários", levou os técnicos a considerar as despesas do Estado, especialmente em relação aos gastos com a infraestrutura (estradas, energia e sistemas de estocagem) e o financiamento da produção. O Estado passou a ser o fiador da modernização da estrutura produtiva.
  2. Desenvolvimento setorial. Além do diagnóstico geral, demasiadamente modesto no título, uma vez que não se reduz a um Plano de Desenvolvimento Econômico, o PDE partiu de uma leitura setorial da realidade econômica, identificando, por assim dizer, as fragilidades setoriais. Trata-se de um planejamento orgânico, sistêmico. Essa perspectiva é de fundamental importância, uma vez que objetivava auxiliar na distribuição setorial dos investimentos, a partir das demandas estabelecidas nos "cenários". Como era de se esperar, a demanda por transporte e comunicação representou 27% do total de investimento, seguido da energia elétrica com 22,4% e da agricultura e pecuária, com 15,4%. Mas a presença do Estado não se limitou a reconhecer essas demandas de ordem, por assim dizer, técnica. A educação e cultura representaram 12,4% dos investimentos e a saúde 9,9%. Nem mesmo o turismo, setor ainda em precoce desenvolvimento, escapou do quadro de intenções do PDE, com 0,4% da intenção de distribuição setorial dos investimentos.
  3. Regionalização das ações. Derivado direto do diagnóstico econômico, o Plano de Desenvolvimento Econômico contempla a escala regional. A regionalização do território fundamentou-se na diferenciação econômica, o que resultou no reagrupamento das zonas fisiográficas e consequente criação das regiões Norte, Planalto, Mato Grosso de Goiás, Goiânia, Estrada de Ferro e Sudoeste. A partir dessa regionalização, o PDE diagnosticou um crescimento desequilibrado do território goiano, especialmente no que se refere ao produto interno e a renda interna. O reconhecimento dessa desigualdade, que extrapola a composição da renda, fez par com a consolidação de Goiânia e de Brasília, compreendidas como polos irradiadores de desenvolvimento, juntamente com a região do Mato Grosso de Goiás. Essa visão, própria da época, traduz a influência de estudos da economia francesa, especialmente de François Perroux. Mas a constatação da desigualdade regional não implicou na busca de uma estratégia de melhor distribuição dos recursos no território. Na perspectiva de se tornar uma fronteira de investimentos, empreendeu-se um esforço para racionalizar a presença do Estado no território, o que reforçou as assimetrias regionais.
  4. Ordenamento administrativo. Atingir os objetivos globais de um determinado plano implica em construir as condições técnicas burocráticas para viabilizar as metas, por consequência, os projetos setoriais. Foi necessário, portanto, montar uma estrutura administrativa que desse conta dessa gigantesca tarefa, especialmente quando se oberva a dimensão e a diversidade regional do território goiano. Lembramos que o retrato de Goiás ainda era aquele que incluía o atual Estado do Tocantins. Para focar em poucos exemplos podemos citar a criação do IDAGO (Instituto de Desenvolvimento Agrícola de Goiás), da CAESGO (Companhia Agrícola do Estado de Goiás), da CASEGO (Companhia de Armazéns e Silos do Estado), da CIAGO (Companhia de Abastecimento do Estado), além do CERNE (Consórcio de Empresas de Radiodifusão e Notícias do Estado), passando pela assistência ao funcionalismo público por meio do IPASGO (Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado de Goiás), até o setor financeiro com a criação da CAIXEGO (Caixa Econômica do Estado de Goiás) e do BD (Banco de Desenvolvimento).
Mas qual seria, de fato, a aprendizagem que o Plano de Desenvolvimento Econômico do Governador Mauro Borges Teixeira poderia oferecer para os governos contemporâneos? Diferente da moda atual que apregoa a falência do Estado, a modernização territorial resultou na ampliação de sua atuação no território. O Estado, para lembrar o economista francês Alain Lipietz, foi responsável pela mediação técnica e pela mediação jurídica que permitiu financiar a modernização da base produtiva. Ao largo dessa modernização, o Estado montou uma infraestrutura de investimento social que permitiu a progressiva incorporação da população ao sistema público de proteção social, muito embora isso não tenha ocorrido à revelia dos conflitos sociais, especialmente no campo. Nossa modernização foi acompanhada, fundamentalmente, pela modernização do latifúndio, traço atemporal de nossa história econômica. A crença de que o planejamento estatal é fundamental para a sociedade, apesar das contradições, é a principal lição do PDE. A outra lição, que se seguiu a deposição de Mauro Borges em 1964, é que a efetivação do planejamento depende das circunstâncias políticas. Essa é a lição de um plano do passado que, não servindo para o presente, certamente poderá servir para o futuro. É mister reconhecer que dispomos, atualmente, de instrumentos técnicos e metodológicos mais eficientes que aqueles que moveram a equipe da Fundação Getúlio Vargas, na década de 1960. Mas a técnica, traduzida na racionalidade do planejamento, não dispõe de autonomia em relação ao mundo. É na ação política que devemos mensurar a eficiência do planejamento, motivo pelo qual as diferentes concepções de planejamento envolvem uma disputa normativa sobre a concepção de Estado. Essa premissa vale tanto para o chamado desenvolvimentismo quanto para o liberalismo. A intervenção do Estado na economia e na sociedade, tão fora de moda nos dias atuais, é uma aporia até mesmo para os mais convictos liberais.